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Confisco de R$ 127 bilhões em depósitos judiciais e o pagamento de grandes precatórios
Nelson Lacerda*
No momento em que se anseia passar o país a limpo, o Congresso Nacional forja as bases de medidas que, na prática, podem desviar dezenas de bilhões de reais em custódia na Justiça para atender interesses políticos e privados. A sociedade, empresas, contribuintes e as autoridades do Poder Judiciário precisam prestar atenção a estas propostas, como se dá pelo texto da Proposta de Emenda Constitucional 159/2015 recentemente aprovada no Senado, com o apoio do Governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), e do prefeito da capital paulista, Fernando Haddad (PT). Supostamente, tem o objetivo de solucionar a inadimplência de estados e municípios com os precatórios alimentares. Mas, a medida esconde uma intenção com abrangência obscena capaz de gerar resultados escandalosos.
O fato é que o Senado Federal quer, ao mesmo tempo, solapar todas as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria e impor uma forma de quitação que privilegie o acerto com grandes empresas, sem ordem cronológica, em detrimento de milhões de pessoas que têm prioridade nos pagamentos. Ainda pior, os parlamentares pretendem autorizar estados e municípios a confiscarem os depósitos judiciais para o pagamento destas dívidas, destruindo todas as cláusulas pétreas da Constituição Federal – igualdade, propriedade, justiça, prioridade, cronologia, entre tantas outras.
Explico. O depósito judicial é o dinheiro que os contribuintes custodiam na Justiça durante ações para se defenderem, por exemplo, de cobrança e autuações indevidas e astronômicas. A lei obriga os depósitos em garantia para se defender na Justiça, portanto, tal recurso é de propriedade das pessoas físicas e jurídicas, não do Poder Judiciário e muito menos da administração pública. Se apossar dele é confisco que destrói Cláusula Pétrea do artigo quinto da Constituição Federal que garante igualdade, segurança e propriedade. As cláusulas Pétreas essas que são imutáveis, mesmo para o STF.
Outra gravidade é evidenciada quando se constata que a PEC permite o avanço sobre 75% dos recursos que estão no sistema de depósitos, entre eles as penhoras on-line. Ora, os legisladores também estão impondo um verdadeiro bloqueio coercitivo de valores que não são das empresas, mas de obrigações destas com terceiros, por isso, de natureza bem diversa da outra. Recursos os quais podem retornar, com certa agilidade, aos responsáveis pela sua administração logo que as pendências judiciais sejam resolvidas ou mesmo substituídos por outras garantias ao longo das defesas dos respectivos processos. Em números, no ano de 2014, estava sob tutela e proteção constitucional dos Tribunais de Justiça a quantia de R$ 127 bilhões, dos quais R$ 59 bilhões somente no Estado de São Paulo. Este é o valor que está para ser confiscado no anseio do legislador em se posicionar ao lado de estados e municípios na matéria dos precatórios e, logo, contra a sociedade e empresas.
Mas, há outro elemento nisto tudo. Os Tribunais de Justiça de todos os estados da Federação colecionam decisões que impedem o Poder Executivo de botar a mão nestes bilhões. Além disso, não há nenhuma garantia de ressarcimento imediato por parte do estado ou do município se a sentença lhes for desfavorável. O Congresso Nacional, endossado por governadores e prefeitos, querem confiscar valores do privado, trazendo o caos para o Judiciário e transformar depósitos judiciais em novos precatórios para serem pagos em vinte anos, isto se o forem quitados. Diante destas evidências, as verdadeiras intenções do Senado Federal em transformar uma proposta de emenda constitucional num tipo de esquema para políticos e grandes credores “se beneficiarem” com dinheiro dos outros precisam ser apuradas
Há um detalhe a mais nesta batalha da sociedade por seus direitos devidos. Noutra absoluta afronta ao Supremo Tribunal Federal, o Senado também aprovou outra PEC do “calote público”. Trata-se da PEC 152/2015, de autoria do Senador José Serra (PSDB-SP), a qual acrescenta o artigo 101 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias com fins de instituir novo regime especial de pagamento de precatório. O regime especial de pagamento que esta PEC almeja implantar bate de frente com a modulação feita pelo STF ante a inconstitucionalidade do regime especial da emenda 62 de 2009. O que se quer é voltar à quantia mensal de 1% da receita líquida de estados e municípios para quitação dos precatórios enquanto que a Corte Suprema determinou 1,5%. Como, na prática, nada está sendo pago, a intenção verdadeira está nos meandros do texto, que determina a proibição de estados e municípios serem objeto de intervenção ou arrestos de numerários para cumprimento de suas obrigações para com os precaristas. Esta PEC ainda acrescenta mais um mês de prazo para que os estados depositem o percentual deduzido das receitas ocorrentes líquidas apuradas, passando para o segundo mês após os pagamentos.
O absurdo e abuso maior é que se deseja facilitar estas violações ao direito do cidadão e das empresas por força de emenda à Carta Magna. Ao acreditar que rapidamente estarão com os recursos em depósito na Justiça e que a PEC-159 vai derrubar a ordem cronológica dos pagamentos, os senadores querem dar prioridade ao pagamento das dívidas com valor superior a 15% do montante dos precatórios (não alimentares). Estas são, em geral, grandes dívidas resultantes de disputas judiciais envolvendo grandes contratos e grandes empresas. E, também, uma quantidade importante de “derrotas” na Justiça em casos que precisam passar por minuciosa averiguação por corregedorias e tribunais de contas.
A manobra na lei está sobretudo no fato de que estes precatórios não são preferenciais, isto é, alimentares, aqueles devidos a pessoas físicas, cidadãos para quem o estado deve pedaços de salários, indenizações com desapropriações, acidentes, mal atendimento etc. A média de valor destes precatórios alimentares é de R$ 400 mil reais cada. Já os não alimentares são precatórios com valores de milhões cada e há alguns que chegam à cifra de bilhões de reais. Seriam estes a ter condições para receber na frente com o fim da ordem cronológica determinada pelo artigo 100 da Constituição Federal. No acordo possível determinado pela PEC vão receber 15% no primeiro ano e mais cinco parcelas nos anos seguintes.
Percebe-se que esta nova PEC, de forma dissimulada, altera o texto Constitucional desde o ano de 2000 e com convalidação recente do STF, ao autorizar a compensação somente de impostos devidos e inscritos até 25 de março de 2015, observadas as leis próprias do ente federado – uma tentativa de se legalizar o ilegal. Atenção a este ponto, pois o estado nunca liberou compensação administrativa, mesmo tendo instrumentos legais para fazê-lo. Os estados mantêm um tipo de meia-compensação para forçar a discussão no Judiciário, obrigar a empresa a fazer depósito e, assim, gerar mais recursos para serem apossados pelo mesmo poder que forçou a briga na Justiça. Contaminando o Judiciário, que não faz as leis, somente as cumpre, sendo o único dos três poderes com credibilidade e que se torna a grande esperança para que se tenha um país, de fato, melhor.
Mas a sociedade não pode ser ingênua. Tudo isto, e outras propostas legislativas que prejudicam a população, só se tornam possíveis porque a sociedade está com os olhos voltados para o infindável escândalo da Lava Jato. É de conhecimento público que, neste conjunto de investigações, muitos dos senadores e deputados foram, ao menos, citados. São os mesmos parlamentares os quais pretendem arrastar o Judiciário para o mar de lama que envolve os outros poderes. Agora, a trincheira de resistência contra estes absurdos muda-se de lugar. Primeiro, por ter sido alterada no texto original, a matéria volta para nova votação na Câmara dos Deputados. Se não cair nesta instância, restará a Presidência da República e a sua capacidade constitucional de veto. Caso não o faça, as atenções, e a esperança do contribuinte, se voltarão para o STF.
*Por Nelson Lacerda, especialista em Direito Tributário e sócio fundador do Lacerda & Lacerda Advogados
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