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Souza Cury Advocacia
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07/06/2017
Projetos legislativos sobre o aborto e a ameaça a direitos individuais
Por Ana Paula de Souza Cury, advogada especializada em Direito Médico, sócia do Souza Cury Advocacia
Maria Luiza Gorga, advogada especializada em Direito Médico, sócia do Fernando Fernandes Advogados
As agendas do Congresso Nacional e da Supremo Tribunal Federal de 2017 são especialmente importantes para a sociedade. Um novo marco legal anticorrupção, as reformas da previdência e da leis trabalhistas e medidas para acelerar o processo de recuperação econômica vão dividir espaço nos meios de comunicação com os desdobramentos da Operação Lava Jato, os julgamentos das ações penais, e o acirramento da crise política. Entretanto, um tema divulgado no final 2016, que trata das liberdades individuais da mulher cidadã, começa a gerar mais tensão entre grupos de interesse, sejam os ditos progressistas ou os qualificados como conservadores.
No começo de dezembro passado, a Primeira Turma do STF firmou novo entendimento acerca do aborto, afirmando que a prática da conduta durante os primeiros três meses de gestação não configuraria crime. Em síntese, entendeu-se que apesar da proibição ao aborto constar expressamente do Código Penal brasileiro, esta pode (e deve) ser relativizada pelo contexto social – contexto esse que, no Brasil, seleciona apenas um extrato social para sofrer as consequências do aborto clandestino, sejam essas as consequências sociais, penais, ou mesmo o risco de morte -, sendo afirmado que o aborto, ou seja, a interrupção da gravidez com a morte do feto, se interpretado de forma a incluir o primeiro trimestre de gravidez, “viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade”.
A decisão gerou fortes reações e movimentou o Poder Legislativo, tendo sido instalada, na Câmara dos Deputados, uma comissão especial com o objetivo de incluir na Constituição disposição expressa sobre a proibição do aborto. A comissão já conta com pelo menos 25 parlamentares declaradamente contra o aborto, sendo que a maioria dos integrantes, inclusive aqueles que ocupam os cargos principais, está ligada a setores católicos e evangélicos. A criação de tal comissão não foi a única proposta conservadora no tocante ao aborto, tendo sido apresentado no Senado o PLS 461/2016, que busca incluir o art. 127-A no Código Penal, dispondo que “considera-se aborto a interrupção da vida intrauterina em qualquer estágio da gestação”.
O aumento deste atrito entre o Congresso Nacional e o STF aumentará neste ano. A Corte Suprema julga, ainda em 2017, a possibilidade do aborto em caso de gestantes infectadas pelo zika vírus. O caso, que estava pautado para julgamento no último dia 7 de dezembro, foi retirado da sessão pela Presidente da Corte, a Ministra Carmen Lúcia, e trata da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5581, protocolada pela Associação dos Defensores Públicos (Anadep), que questiona as atuais políticas públicas voltadas para gestantes e crianças vítimas da epidemia do vírus no Brasil, dado o fato de que o diagnóstico da infecção por zika, durante a gestação, está associado a casos de microcefalia e outras malformações fetais, de forma similar ao quanto já levado ao Supremo no julgamento histórico sobre a possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencefálicos.
A excepcionalidade dos casos que estariam autorizados a proceder à interrupção da gravidez, contudo, não dissuadiu setores como a CNBB de protestarem contra a ação, assim como as entidades Movimento em Favor da Vida (Movida), a Associação Casa Luz, a Obra Lúmen de Evangelização, e o Lar de Clara, que já promoveram ato público, em janeiro deste ano, em Fortaleza, e preveem a realização de atos em outras cidades, incluindo Brasília, como parte do chamado Ato Nacional em Defesa da Vida.
Esse não é o primeiro combate ideológico existente o Congresso Nacional, apoiado por organizações civis conservadoras, e o Supremo Tribunal Federal. Embates como esse ocorreram com o PL 6583/13 (Estatuto da Família), que buscava definir como entidade familiar apenas aquela formada por homem e mulher, uma reação à Resolução n. 175 do Conselho Nacional de Justiça, a qual determinou que cartórios do país não poderiam recusar a celebração de casamentos civis a casais do mesmo sexo, ou deixar de converter em casamento a união estável homoafetiva, resolução esta que surgiu após o Supremo Tribunal Federal reconhecer, em 2011, com efeito vinculante e erga omnes, o direito à união estável a casais do mesmo sexo (ADPF 132/RJ e ADI 4.277).
Há expectativas de mobilização da sociedade civil em torno do tema do aborto como se viu após o Estatuto da Família começar a receber tramitação prioritária. Em 2015, houve manifestações de setores religiosos e conservadores, bem como marchas de setores contrários ao Estatuto – com participação, inclusive, de Seções da Ordem dos Advogados do Brasil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família.
Outra bandeira utilizada por aqueles contrários ao aborto é a movimentação pela aprovação do PL 478/2007 (Estatuto do Nascituro). Diversos atos contra e a favor do projeto já foram realizados pelo país, como, por exemplo, a 9ª Marcha Nacional da Cidadania pela Vida e Contra o Aborto, realizada em 2016. O Estatuto do Nascituro, se aprovado, também complicaria futuros debates a respeito do direito ao aborto, pois define que a vida começa no momento da concepção, estendendo ao feto os mesmos direitos daqueles indivíduos já nascidos – uma proposta que, se aprovada, dificultaria a realização do aborto até mesmo nas hipóteses já garantidas em nossa legislação (ou seja, em casos de estupro e havendo risco de morte da gestante).
Há, ainda, que se lembrar da existência do PL 5069/2013, que foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados em 2015 e que, na época, também ocupou a mídia com posicionamentos contra e a favor de sua aprovação.
A matéria encontra-se parada, mas, caso aprovado o projeto, este também dificultará a realização do aborto em casos de estupro, exigindo a realização de exame de corpo de delito e comunicação do fato à autoridade, além de prever que as menores de idade dependem do consentimento de seu representante legal, criando diversos entraves que afastam a possibilidade de um aborto legal e seguro.
Ainda, aproveitando o conturbado cenário político, voltou a tramitar a PEC 29/2015, que busca alterar a Constituição Federal para inserir no art. 5º – aquele que trata dos direitos individuais e coletivos fundamentais – a explicitação da inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”, determinando como concepção o encontro entre o óvulo e o espermatozoide.
Tal texto, que carece de qualquer base científica para a determinação de “vida”, se aprovado, gera o risco de passar a proibir as hipóteses de aborto hoje permitidas, tornando-as crimes, bem como pode criar inúmeros entraves a questões como a fertilização in vitro, que envolve o congelamento de embriões, além da própria pesquisa científica com as células tronco embrionárias.
O embate está apenas começando, e mais do que um jogo de poderes – entre Legislativo e Judiciário -, traz à tona o jogo de interesses de setores conservadores que buscam, continuamente, a inserção e a aprovação de suas pautas no cenário legislativo nacional, contando com o apoio de setores da população geralmente organizados através de entidades de cunho religioso e que, se vitoriosos, ameaçam não apenas direitos individuais já conquistados como também a própria laicidade do Estado.
Isso porque, ao se inserir na Constituição Federal a proibição ao aborto, engessam-se as discussões como aquela recentemente protagonizada pelo Supremo Tribunal Federal, que trabalhou com sopesamento de valores e hierarquia de normas, pois tendo a proibição um caráter constitucional, se retira a possibilidade de raciocínios semelhantes, inclusive no tocante à futura discussão sobre a possibilidade de interrupção da gravidez para as grávidas infectadas pelo zika vírus.
Tais movimentações legislativas constituem um ataque aos poucos direitos reprodutivos e sexuais conquistados pelas mulheres no Brasil, em ofensiva organizada por setores identificados da sociedade e que se aglutinam sobretudo na Bancada Religiosa, movimento que contraria a posição de neutralidade religiosa que deve existir em um país laico, no qual se deve primar pela não-interferências de visões religiosas em questões sociais, políticas e culturais.
A aprovação de tais Projetos de Lei e possível Emenda Constitucional, da forma como são redigidos, além de emperrarem a evolução legislativa e jurisprudencial, também colocam em risco as permissões legais ao aborto sentimental e ao aborto terapêutico, bem como a possibilidade de interrupção da gravidez em caso de fetos anencefálicos, já que a vida do feto em gestação teria o mesmo valor legal que a da gestante, sendo o feto portador dos mesmos direitos que qualquer indivíduo, criando um verdadeiro pesadelo ético e jurídico.
Até mesmo medidas bastante pacificadas na sociedade podem ser afetadas, já que a depender da definição do termo “concepção”, se abre a possibilidade até mesmo para a proibição da chamada pílula do dia seguinte, o que também é o caso a se depender da interpretação dada a dispositivos do PL 5069/2013, já que a pílula do dia seguinte pode vir a ser interpretada como uma forma de auxílio ao aborto.
A tramitação de todos esses projetos evidencia que a saúde reprodutiva e sexual da mulher, bem como o direito de decidir livremente sobre seu corpo, não é temática que conta com o apoio do Poder Legislativo, cabendo a organizações da sociedade civil a mobilização para, se não conseguir avanços, ao menos evitar retrocessos.
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