*Fernando Bianchi
A Câmara de Regulação de Mercado de Medicamentos (CMED) foi criada com o objetivo de realizar a regulação econômica do mercado de medicamentos, promover a assistência farmacêutica à população, estimular o fornecimento de medicamentos e conferir maior competitividade ao mercado. Recentemente, editou a resolução nº 02/2018, cujo objetivo entre outros foi “regular preços de medicamentos fornecidos por hospitais privados”.
A resolução proibiu a aplicação de qualquer margem ou remuneração adicional pelos hospitais particulares sobre o valor dos medicamentos, obrigando-os a tão somente, receber o reembolso pelo preço de aquisição do produto de seus pacientes e operadoras de planos de saúde, ainda que tais adicionais sejam para compensar os custos com os serviços afetos a gestão dos medicamentos e determinou a publicidade do preço de aquisição dos medicamentos, inclusive com a disponibilização da respectiva nota fiscal de compra dos mesmos para consulta de pacientes.
Referida resolução prevê como infração “ofertar medicamentos com valor superior àquele pelo qual foi adquirido” e ainda “cobrar de paciente ou de plano de saúde, valor superior àquele pelo que o medicamento foi adquirido”. As multas previstas para o caso de descumprimento variam de R$658,78 a R$9.881.700,00, que poderão ser dobradas em caso de reincidência.
A norma afronta a legislação e provoca grave risco ao setor hospitalar, responsável pela prestação de serviços de saúde de alta relevância pública.
A citada resolução não pode ser mantida.
Os hospitais não comercializam medicamentos, mas sim, utilizam-nos como insumos necessários a realização de sua atividade econômica – prestação de serviços hospitalares – ou seja, como uma espécie de matéria prima para o serviço hospitalar, evidenciando a impossibilidade de aplicação da citada resolução que tem como objeto o estabelecimento de margens para fixação e comercialização de medicamentos para farmácias de hospitais.
Ademais, por força de uma regulamentação exigente, por parte do Ministério da Saúde, Anvisa e da própria CMED, os hospitais tem obrigação legal de cumprir várias etapas na gestão de medicação em suas farmácias, tais como: aquisição, transporte, armazenagem, manuseio, manipulação, unitarização, administração e rastreabilidade, ou seja, no cuidado com os medicamentos desde a sua aquisição até seu descarte. Tal gestão envolve profissionais qualificados e estrutura altamente custosa, resultando uma despesa bem significativa que necessita integrar o valor cobrado do medicamento.
Portanto, o valor cobrado por parte dos hospitais, pelos medicamentos que ministram em seus pacientes, não pode ser restrito ao seu custo de aquisição, mas sim, a soma desse com o “custo de medicamentos vencidos” mais “custo de ociosidade” mais “custo de administração”.
Referida resolução sequer permite a cobrança dos tributos, como o ISS, que incide sobre os medicamentos, e que é pago pelos hospitais, no custo da medicação.
A resolução é tão equivocada que ao eliminar qualquer margem de comercialização de medicamento, contraria a própria lei 10.742/03, especialmente em relação ao seu artigo 6º, que confere competência à CMED para estabelecer critérios para fixação da margem de comercialização de medicamentos.
Isso porque citada resolução não estabeleceu critérios para fixação de margens de comercialização de medicamentos como seria de rigor, mas sim, eliminou/extinguiu totalmente toda e qualquer margem.
Citada resolução sob o ponto de vista jurídico infringe: artigo 1º, IV, da CF, que tratam do princípio da livre iniciativa; artigo 199 da CF que trata da assistência à saúde e da livre iniciativa; art. 5º. II da CF que trata do princípio da legalidade, considerando que a mesma é apenas um regulamento que não pode se sobrepor a legislação federal; lei Federal nº 10.742/03, já que ela extrapola seus próprios limites; art. 20 da LINDB – Lei de Introdução às normas de direito brasileiro, já que para edição da citada Resolução, não foi realizada prévia verificação de suas consequências práticas; art. 5º. XXXVI, já que desrespeita o ato jurídico perfeito, representado pelos contratos firmados entre hospitais e operadoras de planos de saúde, onde foram negociadas e fixadas tabelas de preços dos medicamentos utilizados nos atendimentos dos beneficiários; princípio da razoabilidade e proporcionalidade, já que não permite nem mesmo a cobrança de margem mínima capaz de cobrir as despesas com a gestão do medicamento;
art. 170 da CF, que trata da livre concorrência, e sigilo empresarial na medida em que os hospitais terão publicados todas as informações de negociações com fornecedores de medicação, já que citada resolução impõe a exibição das respectivas notas fiscais de aquisição.
Atualmente, segundo a Associação Nacional dos Hospitais Privados, 58,5% do faturamento total dos hospitais decorre de cobrança de insumos fornecidos nos atendimentos médicos (medicamentos, próteses, órteses e gases) sendo que 25% desse total, decorrem dos “medicamentos”. Em 2017, segundo dados da referida Associação, o faturamento do setor Hospitalar, exclusivamente decorrente de “medicamentos” foi de R$ 11,04 bilhões de reais e o lucro de R$7,8 bilhões. Nesse cenário, a aplicação de tal resolução ensejaria de pronto um prejuízo de R$3,1 bilhões de reais para o setor.
Trata-se de uma intervenção desastrosa do Governo na economia, na definição de preços aplicáveis em serviços e produtos da iniciativa privada.
Tal resolução enseja grave risco a todo o setor hospitalar do país, num primeiro momento de “diminuição de leitos hospitalares”, imediatamente após, a própria manutenção das atividades de várias unidades hospitalares, já tão escassas em nossas cidades, e ainda, um efeito cascata nefasto, sob o ponto de vista social, como desemprego, diminuição de recolhimento de impostos, desaceleração da economia, dentre outros.
Ademais, se é certo que o estado não pode funcionar como instrumento de garantia de lucros da iniciativa privada, é certo que também não pode desconsiderar o investimento que é feito pelos hospitais na prestação de bons serviços.
Outrossim, a imposição de margem de lucro zero torna inviável a manutenção do oferecimento dos medicamentos e serviços nos hospitais, situação que majoraria a procura pelo atendimento em hospitais públicos, que como sabido, não conseguem atender a demanda.
Portanto, até mesmo para uma visão consumeirista, que a princípio poderia enxergá-la como uma evolução positiva e benéfica diante da “transparência da informação” e possível redução de custo da prestação de serviços hospitalares, que na realidade, citada resolução enseja efeitos danosos.
Atualmente os efeitos de tal resolução foram suspensos por decisões judiciais liminares obtidas em ações promovidas por entidades representantes de hospitais, perante a Justiça Federal do Distrito Federal, que ainda precisam ser confirmadas em decisão de mérito.
*Fernando Bianchi, sócio de Miglioli e Bianchi Advogados, membro das Comissões de Direito Médico e de Estudos de Planos de Saúde da OAB/SP