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01/03/2019
Princípio da dignidade humana e programas de distribuição de renda na Constituição
Estadão
Ricardo Prado Pires de Campos*
18 de janeiro de 2019
O Bolsa Família virou um divisor de águas na política brasileira, possui árduos defensores e inúmeros detratores. Os argumentos vão do racional ao emocional com uma rapidez impressionante. Em verdade, traz subjacente toda uma complexa forma de ver o mundo, muito distinta entre pessoas que nasceram em condições de vida muito diversas.
Muita gente acredita que o Estado deveria ser neutro nas relações sociais, ou seja, deveria assegurar a segurança pública e não influenciar na economia, a qual deveria ficar para a iniciativa privada.
Bem, semelhante Estado não existe, nunca existiu e nem existirá.
O Estado, por natureza, é o maior peso da balança, e onde ele se instala confere uma vantagem imensa dificilmente contrabalanceada pelo outro lado. Isso começou na segurança pública e se estende para os demais setores.
O Estado pode ter duas origens: nasce da união dos fracos para combater ou limitar os fortes (Rousseau); ou nasce do esforço dos fortes para escravizar os mais fracos (Hobbes, Maquiavel). Em qualquer das formas, ele não é uma entidade neutra, ao contrário, é extremamente ativo, beneficia alguns, em prejuízo de outros.
Há fortes opositores aos programas de distribuição de renda, pois, dizem: “estimulam a vagabundagem”. E há alguma verdade nisso. Todavia, é preciso fazer outras considerações acerca de um tema que está muito longe de ser tão simples como se imagina.
Primeiro, é preciso ter consciência de que o Estado não é neutro nas relações sociais, ele está o tempo todo beneficiando alguém, e na maioria das vezes, em prejuízo de outrem.
Depois, é preciso enxergar que o Estado beneficia, também, de forma muito significativa os mais ricos: transfere centenas de bilhões anuais para as pessoas que têm aplicações financeiras, a turma mais rica da população.
Em 2017, foram gastos mais de 300 bilhões em juros da dívida pública, segundo o relatório anual da Secretaria do Tesouro Nacional. E 2018, segue no mesmo caminho. E quem mais recebe, é quem mais tem. Ou seja, o Estado funciona como um grande transferidor de renda: de toda a população, que paga impostos sobre tudo que consome, para transferir aos mais ricos na forma de juros.
O Estado transfere outros bilhões para os empresários, os grandes, os mais ricos, sobre a forma de isenção tributária ou sob a forma de juros subsidiados (BNDES, financiamento agrícola, e outros); o Estado transfere mais centenas de bilhões para outras classes sociais através das aposentadorias e outros benefícios previdenciários.
Em suma, o Estado está o tempo todo tirando dinheiro de muitos e transferindo para algum grupo diferenciado. Não é por outro motivo que as pessoas mais ricas do País vivem voltadas para a política, pois, entendem o quanto isso representa em suas vidas.
Quem desdenha da política é exatamente quem menos possui, porque não percebeu, ainda, o quanto isso influencia diretamente em sua vida.
Pois bem, fixada a premissa de que o Estado não é neutro, mas sim o maior transferidor de renda do País, resta analisar o que fazer para gerar um sistema minimamente eficiente e que traga alguma justiça social em suas relações.
O Estado arrecada muitos impostos sobre o consumo, todos pagam; é importante, portanto, devolver na forma de serviços, de bens ou de valores para todos.
A escola pública é uma forma de devolução, os serviços de saúde e segurança são outras; os programas sociais de redistribuição de renda também.
Teoricamente, não haveria necessidade de transferir renda para pessoas autossuficientes. Quem consegue arcar com suas despesas através dos frutos de seu próprio trabalho, em princípio, não precisaria da ajuda do Estado. Esse é o lema dos liberais. “Cada um por si, e Deus por todos”.
O problema é que nem todo mundo é autossuficiente. O médico Drauzio Varella gravou um vídeo em que aborda a questão da meritocracia. Diz ele, falar em meritocracia quando você tem pessoas que tiveram condições semelhantes de vida, quando essas pessoas tiveram acesso a serviços básicos de saúde e educação, quando essas pessoas tiveram famílias minimante estruturadas, que lhes deram formação, está tudo bem, é razoável. Mas há muitos casos onde isso não ocorreu, nem ocorre na atualidade.
Há muita gente que nasce em condições absolutamente desumanas, que sobrevivem porque a vida é persistente. Lembro-me do caso de um garoto que nascido na periferia, aos 14 anos de idade, já tinha visto a casa, leia-se o barraco de sua família, ser levado pela enchente numa ocasião, e pelo fogo em outra. A vida para ele era uma guerra cotidiana por alimento, por um mínimo de segurança, que ele nunca teve, e para vencer o medo. Síndrome de pânico, isso é “coisa de rico”, pobre não tem direito a “síndrome”, o pânico é diário e constante.
Mas o que quero destacar, nesse ponto, é que há muitos momentos e muitas ocasiões da vida em que as pessoas não são autossuficientes, nem aquelas que nasceram em boas condições de existência.
Todos nós já fomos crianças. Criança precisa de proteção, de carinho, de cuidados e de alimentação; o que, na imensa maioria das vezes, ela não consegue sozinha. Essa história se repete na velhice, há um momento em que as pernas não caminham, o corpo fica muito lento, os sentidos funcionam precariamente, e as pessoas se tornam dependentes de outras mais jovens.
E o que ocorre na velhice ocorre em muitas doenças. Doenças físicas ou psiquiátricas, muitas, são incapacitantes; se não houver apoio e tratamento, as pessoas sucumbem.
Pois bem, essas são algumas das hipóteses onde um programa de transferência de renda se faz imprescindível (art. 203 da CF).
O capitalismo transformou o dinheiro num instrumento eficiente de obtenção de produtos e serviços. Quem tem dinheiro, em geral, obtém o que precisa. Num mundo ideal, que almejamos conquistar pelo trabalho, todas as pessoas terão suas necessidades satisfeitas. Para isso trabalhamos diuturnamente.
O Estado ideal é aquele que busca equilibrar as relações sociais, não é o que escraviza a população em favor dos mais fortes, mas o que protege a todos, inclusive os mais frágeis. Nosso Direito Constitucional foi instituído sob a égide da teoria do “Contrato Social” de Rousseau e sua ideia de “soberania popular” (art.14). A Constituição busca limitar a liberdade (dos mais fortes, inclusive o próprio Estado), criando os direitos e garantias individuais (art.5.º); e também, procura ajudar os menos favorecidos criando um sistema de direitos e proteção sociais (arts. 6.º e 7.º, dentre outros), inclusive a assistência social (art. 203).
Assim, programas sociais de distribuição de renda são necessários e válidos dentro do ordenamento jurídico de qualquer país; e nossa Constituição Federal prevê expressamente “a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (art. 6.º).
Eles podem ser eficazes se visarem às pessoas mais frágeis da população, que em dado momento da vida, pode ser qualquer um de nós. Esses programas podem ser bem ou mal administrados, pois, se estimularem a vagabundagem, se transferirem renda para quem dela não precisa, obviamente, estarão se desviando de sua finalidade.
Correção de rumo é preciso sempre. A vida pode ser comparada a dirigir um barco em alto mar; se cochilarmos, podemos acordar em alguma praia estranha e muito longe de nosso destino. O piloto tem de estar alerta o tempo todo e com braços fortes empunhar o leme na direção certa se quiser atingir um porto seguro.
O Bolsa Família se deturpou e necessita de correções. De programa de resgate da dignidade da pessoa humana se transformou na institucionalização da compra de votos, o que é péssimo para a democracia. O programa não pode estimular a inércia; o programa deve estar atrelado a contraprestação pelo beneficiário, sempre que possível, criando condições para que a pessoa possa obter capacitação que lhe permita a autossuficiência (estimulando a educação, a profissionalização e a cultura), salvo se algum obstáculo intransponível (saúde ou idade) inviabilizar esse objetivo.
*Ricardo Prado Pires de Campos, procurador de Justiça no Ministério Público de São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais e presidente do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD)
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