Autoritarismo togado
22/04/2019As reações ao projeto anticrime
22/04/2019acolhimento às vítimas de crimes
Celeste Leite dos Santos e Pedro Eduardo de Camargo Elias*
28 de março de 2019 | 05h00
A Constituição Federal prevê o Estado Social e Democrático de Direito como aquele que assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.
O acesso à justiça não se dá apenas por meio de um processo judicial, mas principalmente pelo direito material de acesso a uma decisão justa, seja em um processo judicial, seja em uma relação contratual de acordo de não persecução penal (Resolução 181/17 com a redação dada pela Resolução 183/18 do Conselho Nacional do Ministério Público) ou de imposição negociada de pena. Tais premissas se encontram também no denominado Projeto de Lei AntiCrime idealizado pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, que, dentre outras medidas, prevê a incorporação desses institutos no Código Penal e no Código de Processo Penal.
De forma insuficiente, o processo criminal tradicional se baseia em modelo de intervenção que em breve síntese possui duas finalidades: a repressão do fato criminoso a partir da cominação de pena à pessoa que praticou a conduta descrita no tipo penal e a prevenção de novos delitos pelos membros da sociedade que se sentiriam inibidos a delinquir a partir da verificação da real punição dos infratores. A reparação do dano causado à vítima não é tratada como finalidade da pena (restitution in integrum), impedindo que o próprio autor dos fatos efetue sua autorresponsabilização pelas consequências geradas pelo delito, voltando a assumir papel ativo junto a sociedade.
Ante a insuficiência do modelo processual em vigor como resposta a todos os crimes, foi implantado no Ministério Público do Estado de São Paulo o Projeto Avarc – Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos, coordenado pelas promotoras de Justiça Celeste Leite dos Santos e Fabíola Moran Faloppa. O Projeto Avarc teve pronto acolhimento pelo diretor da Escola Superior do Ministério Público, o procurador de Justiça Antonio Carlos da Ponte, bem como foi idealizado conjuntamente com o procurador de Justiça Pedro Henrique Demercian. Foram essenciais também para a sua elaboração e consecução os promotores de Justiça Alexandre Rocha Almeida de Moraes e Roberto Alves Barbosa e o promotor de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal (Caocrim), Arthur Pinto de Lemos Júnior.
Considera-se necessário promover a readequação das respostas penais aos fatos criminais, em especial partindo-se da doutrina da proteção integral da vítima.
I – OBJETIVOS
Desenvolvimento de modelo contratual de gestão de resposta penal à prática de crimes, incluindo mapeamento dos atores, processos de trabalho, descrição de procedimentos, proteção social por meio da criação de central de atendimento de vítimas em todo o Ministério Público, sem prejuízo de eventual e encaminhamentos das vítimas às redes de apoio especializado, assistência social, saúde e profissionalização, gerando-se fluxogramas e rotinas de trabalho.
II – POLÍTICA CRIMINAL
A atuação funcional pró ativa possibilitará a propositura e consolidação de politicas públicas de amparo a vítimas de crimes, combate à sub notificação de delitos e controle externo do atendimento prestado pelas policias civil e militar, buscando como resultado a consolidação de práticas e metodologias de reparação do dano causado à vítima e a sociedade, que contribuam para a redução do sistema penal, sendo a tão propalada redução do encarceramento no Brasil uma consequência dessa nova forma de gestão da resposta estatal à criminalidade.
Reforça-se com isso a ideia de que crime não pode ser reduzido à ideia de conflito, uma vez que mais do que uma infração penal a que a lei comina pena, é uma ingerência estatal na vida dos cidadãos em relação a determinadas condutas que ofendam bens jurídicos individuais ou coletivos. O Ministério Público foi o agente estatal eleito pela Constituição para formar convicção da necessidade e conveniência de propositura da ação penal e, portanto, possui legitimidade para atuar extraprocessualmente até para formar sua opinio delicti. Tal mudança de paradigma possibilita desde a identificação das causas da criminalidade, como para se induzir a implementação de politicas públicas criminais pelos órgãos públicos e, modificar a forma de interação com a sociedade que abranja as relações interpessoais e sociais.
O grande objetivo da relação negociada pelo Ministério Público, com ou sem o auxílio de um terceiro facilitador, é reconstruir historicamente o ocorrido, validando as histórias pessoais, obter a autorresponsabilização do autor dos fatos e reparar o dano causado à vítima e comunidade. Por este motivo, ao invés de termos um resultado estático processual, criam-se opções dinâmicas e criativas de acesso à justiça, por intermédio do protagonismo ministerial (sistema multiportas).
III – A TUTELA PENAL DA VÍTIMA
Considera-se abrangido pelo conceito de vítima, tanto pessoas físicas e jurídicas que sofrem diretamente a ação delituosa, como a comunidade atingida pelas consequências de sua prática (v.g, crimes de terrorismo, crime organizado, colarinho branco, etc). O diálogo restaurador instaurado entre vítima e vitimário busca abranger esse aspecto dúplice, tutelando-se tanto bens jurídicos individuais, como coletivos.
A equipe do projeto Avarc reconhece os desequilíbrios existentes na relação entre vítima e vitimário, buscando-se evitar a revitimização ou continuidade de um ciclo de opressão social.
Dentre os princípios básicos de justiça para vítimas de crimes e de abuso de poder, estabelecidos pela Declaração da Assembléia Geral das Nações Unidas (1985), destacam-se:
a. As vítimas devem receber a assistência material, médica, psicológica e social de que necessitem, através de organismos estatais, de voluntariado, comunitários e autóctones;
b. As vítimas devem ser informadas da existência de serviços de saúde, de serviços sociais e de outras formas de assistência que lhes possam ser úteis, e devem ter fácil acesso aos mesmos;
c. O pessoal dos serviços de polícia, de justiça e de saúde, tal como o dos serviços sociais e o de outros serviços interessados, deve receber uma formação que o sensibilize para as necessidades das vítimas, bem como instruções que garantam uma ajuda pronta e adequada às vítimas;
d. Quando sejam prestados serviços e ajuda às vítimas, deve ser dispensada atenção às que tenham necessidades especiais em razão da natureza do prejuízo sofrido ou de fatores tais como os referidos no parágrafo 3, supra.
IV – Política Criminal Dirigida ao Vitimário
A geração de opções ao sistema penal tradicional permite que o vitimário assuma livremente a responsabilidade pelo dano causado (confissão). O novo modelo de gestão de crimes a partir da doutrina da proteção integral da vítima permite ao vitimário:
a) confrontar-se com o fato criminoso e suas consequências, aberto para dispor da sua perspectiva e acolher a do outro;
b) assumir a responsabilidade frente ao fato criminoso;
c) assumir as consequências do dano causado;
d) indenizar a vítima e a sociedade pelos delito praticado.
e) efetuar acordo com o Ministério Público sobre a modalidade de pena aplicável à espécie.
V- Participação da Comunidade Atingida Pela Prática Delitiva
A participação da comunidade pode ocorrer:
i) de forma direta integrando – participação nas audiências designadas pelo Ministério Público com as partes envolvidas no crime;
ii) de forma indireta, via interlocução estabelecida pelo Ministério Público, inclusive por meio de coletivos ou organizações voltadas à proteção à vítima de crimes.
Para se construir uma via de diálogo contínua capaz de garantir a participação de representantes de políticas públicas, agentes responsáveis pela persecução penal e instituições da sociedade civil, é fundamental que se constituam centrais de atendimento à vítimas, possibilidade de participação de entidades da sociedade civil ou líderes comunitários diretamente na audiência, quando o Promotor de Justiça entender relevante e houver anuência da vítima (s) e o vitimário (s) envolvidos.
Busca-se estabelecer relação contínua com líderes comunitários, entidades da sociedade civil e coletivos organizados por meio de visitas e reuniões, contatos por telefone, e mail, skype e meios similares, recepção de notícias de crimes, a fim de criar espaços de atuação conjunta.
VI – Participação de advogados
Como atores integrantes do sistema de acesso à justiça devem orientar a redação de acordos e a autorresponsabilização do autor do crime.
VII – Conclusão
O projeto constitui um ponto de acolhimento de vítimas, ou seja, de escuta ativa e não apenas de orientação, a fim de construir vínculos de confiança que combatam a perpetuação do círculo vitimizatório.
As penas passam a abarcar a dimensão da reparação pelo dano causado (art. 387, inciso IV do CPP), deixando de ficar restrita às suas dimensões preventivas e repressivas (art. 59 do Código Penal).
Esse novo olhar do fenômeno criminógeno possibilita o rompimento do ciclo vitimizatório, oportunidade de reinserção social do vitimário pelo fomento à autorresponsabilização e enfrentamento das consequências do crime, o combate à sub notificação de delitos e o efetivo controle externo dos agentes de segurança pública pelo Ministério Público.
*Celeste Leite dos Santos, associada do Movimento do Ministério Público Democrático, promotora de Justiça, uma das coordenadoras do Projeto Avarc (www.avarc.com.br), doutora pela USP e coordenadora-geral dos Grupos de Estudos do Ministério Público do Estado de São Paulo
*Pedro Eduardo de Camargo Elias, associado do Movimento do Ministério Público Democrático, promotor de Justiça, mestrando pela PUC/SP, e segundo-secretário da Associação Paulista do Ministério Público