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01/04/2019O presidente determinou que o Ministério da Defesa faça ‘comemorações devidas’ sobre o evento que instalou a ditadura militar no Brasil, depois disse que o objetivo não era ‘comemorar’, mas ‘rememorar’.
Letícia Mori – Da BBC News Brasil em São Paulo
29 MAR 2019
O fato de o presidente Jair Bolsonaro ter estimulado comemorações do golpe de 1964 – que completa 55 anos neste 31 de março – gerou um problema concreto para os comandos militares no país dias antes de qualquer celebração ser feita de fato.
Na segunda-feira, o porta-voz da Presidência, Otávio Rêgo Barros, disse que o presidente determinou que o Ministério da Defesa faça “comemorações devidas” sobre o evento que instalou uma ditadura militar no Brasil.
Nesta sexta-feira, a juíza Ivani Silva da Luz , da 6ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, proibiu o governo de celebrar a data. A magistrada atendeu a um pedido da Defensoria Pública da União, que alegou risco de afronta à memória e à verdade se a ordem de Bolsonaro fosse cumprida. O órgão também argumentou que datas comemorativas só podem ser instituídas por lei.
O regime militar durou 21 anos, nos quais não houve eleição direta para presidente, mas perseguição política, tortura praticada pelo Estado e censura à imprensa.
Embora Bolsonaro tenha dito na quinta-feira que o objetivo na verdade seria “rememorar” – e não “comemorar” – a data, a postura ideológica do presidente já havia gerado críticas de diversas entidades e setores sociais, além de criar um problema burocrático para as Forças Armadas.
Ministério Público se manifesta
Brigadas, grupamentos, comandos especiais, academias militares e outras unidades que integram Comandos Militares em dezenove Estados receberam na quarta ofícios do Ministério Público Federal com recomendações para que se abstenham “de promover ou tomar parte de qualquer manifestação pública, em ambiente militar ou fardado, em comemoração ou homenagem ao período de exceção instalado a partir do golpe militar”.
O MPF também recomendou que os comandos adotassem providências para identificar eventuais atos e seus participantes, para “aplicação de punições disciplinares, bem como para comunicar ao Ministério Público Federal, para adoção das providências cabíveis”.
Os comandantes também foram instados a comunicar ao MPF as medidas adotadas para cumprir as recomendações ou explicar as razões de não acatá-las.
No mesmo dia, as consultorias jurídicas do Ministério da Defesa e das Forças Armadas foram acionadas para elaborar pareceres sobre o tema e encaminhá-los aos Comandos Militares dos Estados.
O comando do Exército fez circular um memorando urgente dizendo que os comandantes não deveriam responder ao MPF antes de os pareceres jurídicos ficarem prontos, já que eles “servirão de subsídios para as respostas a serem enviadas” ao Ministério Público.
E apesar da objeção do Ministério Público, a cúpula do Exército orientou os comandos regionais a manterem “as solenidades previamente agendadas relativas ao referido evento” – o Exército chegou a fazer uma formatura em São Paulo na qual o convite era alusivo à “revolução democrática de 31 de março de 1964”.
OAB se manifesta
Além da recomendação do MPF, é muito provável que as consultorias jurídicas do governo tenham de se debruçar sobre manifestações de outras entidades no campo jurídico que também se posicionaram contra a comemoração do golpe.
O Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o Instituto Vladimir Herzog fizeram uma denúncia à ONU (Organização das Nações Unidas) contra a atitude do presidente, que classificaram como uma “tentativa de modificar a narrativa sobre o golpe de 1964”.
As instituições pedem que as Nações Unidas solicitem explicações à missão do Brasil em Genebra e que o caso seja relatado na lista permanente do Conselho de Direitos Humanos da ONU caso o Estado brasileiro não colabore.
O documento afirma que outros membros do governo, como o chanceler Ernesto Araújo, também tentaram fazer a mesma mudança de narrativa, e que essas ações, “cometidas no mais alto nível do Estado são violações dos direitos humanos e do direito humanitário”.
Medidas legais
As recomendações do Ministério Público não têm caráter obrigatório, explica o procurador Julio Araújo, do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, que fez a recomendação aos militares no Estado. Mas o documento serve como alerta “que visa a prevenir práticas ilegais.”
“É uma etapa extrajudicial dentro do trabalho do Ministério Público, em que você aponta uma convicção da instituição e se recomenda que alguém corrija uma atitude ou pede uma abstenção”, explica Araújo.
Ou seja, a recomendação tem caráter preventivo: ela não é obrigatória, mas avisa quem recebe que um eventual descumprimento pode levar a uma ação judicial.
Segundo o procurador, a ação coordenada de procurar os Comandos Militares surgiu da avaliação de vários procuradores que atuam na área de cidadania de que era preciso uma iniciativa. “É compromisso do MPF atuar contra uma atitude que viola aspectos constitucionais e legais”, explica Araújo.
Nos documentos enviados às Forças Armadas, o MPF diz que é dever do Estado brasileiro “não só reparar os danos sofridos por vítimas de abusos estatais no mencionado período, mas também de não infligir a elas novos sofrimentos, o que é certamente ocasionado por uma comemoração oficial do início de um regime que praticou graves violações aos direitos humanos”.
Os documentos também afirmam que as Forças Armadas são instituições nacionais permanentes e regulares, destinadas à defesa da pátria e à garantia dos poderes constitucionais, “não devendo tomar parte em disputas ou manifestações políticas, em respeito ao princípio democrático e ao pluralismo de ideias que rege o Estado brasileiro”.
O MPF também cita regulamentos disciplinares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica que preveem como transgressão aos militares da ativa manifestar-se publicamente a respeito de assuntos políticos ou tomar parte em manifestações de caráter político-partidário.
A resposta elaborada pelas consultorias jurídicas do Ministério da Defesa ainda não foi divulgada, mas na circular distribuída na quarta o comando do Exército afirma que as unidades dos Estados não podem questionar atividades estabelecidas pelo comando nacional.
“Não cabe às autoridades militares instadas pelo MPF obstar as atividades definidas pelo escalão superior”, diz o documento, que afirma ainda que as autoridades devem informar que quaisquer outros questionamentos devem ser encaminhadas ao ministro da Defesa ou ao Comandante do Exército, por meio da Procuradoria-Geral da República.
Não houve indicação até o momento de que a PGR pretenda entrar na questão.
Mas o documento elaborado pelo MPF diz que “o presidente da República se submete à Constituição Federal e às leis vigentes, não possuindo o poder discricionário de desconsiderar todos os dispositivos legais que reconhecem o regime iniciado em 31 de março de 1964 como antidemocrático”.
Membros do Ministério Público Federal dizem que é um dever da entidade atuar na questão. A opinião é compartilhada pelo procurador Ricardo Prado, do Movimento Ministério Público Democrático.
“Você não tem como sustentar que o ato de 1964 seja um ato constitucional e um ato democrático. Nada impede que as pessoas a favor comemorem em seus espaços privados, mas não há justificativa para usar o poder público para fazer essa comemoração.”
O procurador explica que há uma série de medidas judiciais cabíveis que o MP pode tomar depois, dependendo da forma como essas comemorações forem feitas, incluindo uma avaliação sobre responsabilização por improbidade.
Atuação do MPF
Para o professor de direito público Carlos Ari Sundfeld, da Fundação Getúlio Vargas, no entanto, o objetivo do MPF já se realiza com as recomendações feitas. “É uma forma de o Ministério Público se posicionar como instituição importante no debate público”, diz ele.
“O que está em jogo é o novo do papel do MPF entre as instituições de controle.”
“No passado, o MP se limitava no passado à questões mais formais. Hoje, ele está mandando recomendações, dizendo o que acha. Ele entra no debate público e para isso invoca, claro, questões jurídicas”, afirma.
E, para o professor, é importante que a instituição se posicione. “É uma tarefa de defesa da ordem democrática. E dá apoio àqueles que, dentro das Forças Armadas, têm uma visão crítica da ditadura”, diz.
Para ele, as ações legais servem como forma de manifestação das instituições como o MP e a OAB, mas o mais importante é a discussão que se dá no debate público.
“A defesa da democracia no Brasil sempre envolveu muitas organizações como a OAB, a associação de imprensa, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). É um compromisso que exige ação permanente.”
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