O deputado federal Charlles Evangelista (PSL-MG) pretende apresentar um segundo projeto de lei para criminalizar letras de música que contenham determinados conteúdos. O primeiro foi retirado de tramitação por ele mesmo depois de receber questionamentos de artistas por causa da amplitude e subjetividade da matéria.
O texto previa pena de até seis meses de prisão para quem escrevesse letras que estimulassem o uso e o tráfico de drogas e armas; a prática de pornografia, pedofilia ou estupro; ofensas à imagem da mulher; ou o ódio à polícia.
O projeto de lei dizia que “a criminalização de estilos musicais nesse sentido seria uma forma de garantir a saúde mental das famílias e principalmente de crianças e adolescentes que ainda não têm o discernimento necessário para diferenciar o real do imaginário”.
Em entrevista ao JOTA, o deputado Charlles Evangelista negou qualquer caráter de censura. “O projeto quer respeitar a liberdade de expressão e punir criminosos que fazem esse tipo de música. A intenção não é censurar ou inibir os artistas que utilizam músicas com algum tipo de brincadeira ou palavrão”, afirma.
Especialistas em liberdade de expressão não concordam com o deputado. “Além de o projeto revelar uma carga censória perigosa, permite, mediante um subjetivismo para a análise do fato típico, a prática autoritária do agente público”, critica o advogado Alexandre Fidalgo.
Para ele, quando se trata de liberdade de expressão e liberdade artística, qualquer avaliação para criminalizar a conduta é altamente subjetiva e, portanto, uma janela para que vontades pessoais — e censórias — prevaleçam. “A letra que pode ser entendida como apologia a algum crime, pode, também, na livre expressão de pensamento, constituir uma crítica, um reclamo, um desabafo, uma perspectiva de parte da sociedade. Depende de quem ler, ouvir e assistir”, avalia.
O deputado Charlles Evangelista quer que o novo projeto de lei seja menos subjetivo, mas ainda não definiu quais temas serão englobados. “Vamos decidir agora. De forma nenhuma podemos deixar que uma música faça alusão à pedofilia, estupro, drogas e ódio à polícia. Reconheço que o projeto ficou subjetivo e realmente pode causar uma certa discussão com a censura e a liberdade de expressão”, admite o parlamentar.
O produtor musical João Marcelo Bôscoli considera que já há ferramentas e leis para coibir conteúdos impróprios em letras musicais. “Um dos bens mais caros que um país tem é a liberdade de expressão, e o preço da liberdade de expressão é conviver com coisas desagradáveis. Fora que não adiante proibir, hoje existe a deep web e sempre encontram um jeito de disseminar conteúdo. Basta ver o episódio recente da publicação de músicas ‘proibidas’ no Spotify”, diz.
No caso citado por Bôscoli, são compartilhadas no Spotify listas de músicas ‘proibidas’, que não estão no catálogo da plataforma de streaming. Como disfarce, esse conteúdo é postado como se fosse podcast, só que na hora que o usuário aperta o play consegue ouvir, por exemplo, funk-rave, que mistura a batida da música eletrônica com letras de funk, às vezes com conteúdo inapropriado para menores de idade. “Toda vez que você proíbe, acaba estimulando mais ainda”, afirma Bôscoli.
Foi exatamente o caso da música Bichos Escrotos, lançada no disco Cabeça de Dinossauro, dos Titãs, em 1986, e que foi proibida de ser tocada publicamente pela censura. “Felizmente, ninguém respeitou a proibição absurda e radialistas tocavam a música numa doce celebração da liberdade e do fim da ditadura. Por isso insisto que não podemos deixar esses tempos trevosos retornarem”, relembra Tony Bellottto, guitarrista dos Titãs.
Ele é autor de Polícia, música que também faz parte do álbum “Cabeça de Dinossauro”. Bellotto diz que nunca sofreu qualquer tipo de repreensão por causa dessa letra. “Muito pelo contrário. Muitos policiais adoraram a música e adoram tirar selfies com a gente. A censura é sempre uma aberração e está invariavelmente em desacordo com os desejos das pessoas”, diz.
O advogado Alexandre Fidalgo defende liberdade total com relação à disseminação de conteúdo. “Acho que a sociedade filtrará e selecionará o que quer ler, ouvir e ver, mas deve ser garantida a ela o direito de ler, ouvir e ver o que quiser”, afirma.
Para ele, não há justificativa para entender que um estilo musical se torne matéria criminal. “Se um determinado trecho de uma música, de um livro, de uma matéria jornalística, da expressão artística constituir fato ilícito, as leis hoje existentes são suficientes para uma condenação e uma punição”, avalia.