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08/01/2020Leticia Mori
Da BBC Brasil em São Paulo
Quando a empresária paulistana Fernanda Costa descobriu que o responsável pela área financeira de sua empresa, José*, furtou R$ 30 mil do caixa, a raiva foi grande principalmente porque ela e o marido o conheciam havia anos.
“Foi um sentimento de ter sido traída muito forte”, conta Fernanda à BBC News Brasil. Apesar da enorme indignação, a empresária acabou perdoando José, que, graças a um acordo feito com ela e a promotoria, evitou um processo criminal.
Isso porque a empresária participou de um projeto do Ministério Público de São Paulo para auxiliar vítimas de crimes e reparar — ou pelo menos minimizar — os efeitos de delitos, o Avarc (sigla para Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos).
Fernanda foi convidada pelo MP-SP para participar Avarc depois de levar todas as provas do crime cometido por José à polícia.
José, um senhor de quase 60 anos, sem nenhum antecedente criminal, havia trabalhado com o marido de Fernanda em uma grande empresa multinacional no passado. Quando precisou preencher a vaga na própria empresa, o marido de Fernanda resolveu dar uma chance para o ex-colega, que estava desempregado.
“Ele é um senhor, conhecemos a família dele, meu marido já havia trabalhado com ele, que não tinha nenhuma mancha no currículo”, conta Fernanda. “Nunca imaginamos que pudesse fazer uma coisa dessas”, diz Fernanda.
Como responsável pela área financeira, José tinha acesso aos cartões e contas da empresa. Logo após sua contratação, os donos perceberam enormes rombos nas contas, que totalizavam mais de R$ 30 mil. “Não havia possibilidade de ser outra pessoa, estava bem claro que era ele”, diz a empresária.
A empresária conta que estava tomada por um turbilhão de sentimentos — raiva, desejo de Justiça, mas também um ‘peso’ de levar à questão à polícia.
“Imagina, é uma coisa muito grave. Ele poderia ser preso. E tinha a família dele, que ia sofrer também”, diz. Ela conta que chegou até a se culpar. “Você fica pensando, porque eu confiei?”, diz.
Questionado sobre o destino do dinheiro, José disse que iria checar. No dia seguinte não foi trabalhar. Confrontado novamente sobre a questão por telefone, perguntou ao marido de Fernanda se os dois poderiam se encontrar para resolver a questão.
“Ele disse que queria resolver, que ia pagar. Meu marido foi se encontrar com ele, que deu várias desculpas e no fim não pagou”, diz Fernanda.
Sem opções, Fernanda e o marido foram à delegacia fazer um boletim de ocorrência.
Pensando na vítima
Após o inquérito da polícia, o caso foi parar nas mãos da promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, que coordena o Avarc.
“Eu percebi que havia um vácuo na Justiça, que é o acolhimento à vítima”, conta Celeste. “Existe uma preocupação com o crime, o réu é processado, mas a vítima não é levada em conta. No processo penal tradicionalmente a vítima é relegada ao segundo plano”, diz ela.
“Então o Avarc é um projeto para que a promotoria não seja apenas um órgão de acusação, mas de acolhimento e resolução de conflitos.”
A ideia é levar ao campo criminal os princípios da justiça restaurativa — técnica de solução de conflito a partir da escuta das partes diretamente envolvidas, em que elas discutem qual a melhor forma de reparar o dano causado pelo conflito.
A promotoria acolhe a vítima de um crime (ou a procura) e questiona como ela gostaria de ser reparada. Então o acusado é procurado e é proposto um acordo: ele admite o crime, se responsabiliza por ele e concorda com as condições de reparação. Em troca, não é processado criminalmente. As condições podem envolvem reparação financeira, doações para a caridade, trabalho voluntários, entre outros.
Algumas semanas depois de fazer o B.O., Fernanda recebeu uma carta do Ministério Público de SP perguntando se ela gostaria de participar o projeto, que começou em dezembro de 2018.
“De certa forma, foi um alívio, foi como tirar um peso das minhas costas”, diz a empresária. “Porque eu fui, procurei a polícia… Você quer Justiça, claro, mas fica pensando, será que a pessoa ir para a prisão não é demais?”
O caso então seguiu o protocolo estabelecido no Avarc, onde o criminoso é chamado para um encontro com a promotoria e vítima.
“Muitas vezes quando é condenado e vai para a prisão, o réu continua achando que não é culpado, que foi uma ‘vítima do sistema’, que foi injustiçado. Ele não é obrigado a confrontar as consequências do que fez (para a vítima)”, diz Celeste, que coordena o projeto do MP. “Ao encarar a vítima, ele vê diretamente o dano que causou.”
Claro que há casos em que esse encontro não é possível. A promotoria então apresenta ao acusado dos crimes os pedidos de reparação da vítima e tenta-se chegar a um acordo. Às vezes também são usadas videoconferências.
O acusado precisa sempre estar acompanhado de um advogado. Quando não tem dinheiro para pagar por um, pode contar com um dos advogados voluntários do Avarc. Isso porque o encontro acontece antes do início de um processo formal, e a Defensoria Pública (órgão público que defende quem não tem como pagar por um advogado), não atua nessa fase.
“Sempre levamos em consideração as condições do acusado para estabelecer os termos do acordo. É um contrato que ele faz”, explica Celeste. Se a pessoa não o cumprir, o MP segue o processo que normalmente aconteceria, iniciando um processo criminal contra o acusado e o denunciando à Justiça.
Lágrimas e perdão
No caso de Fernanda, o encontro com José gerou lágrimas dos dois lados.
Celeste conta que, no início, José não queria admitir o crime. Ela então explicou que, para participar e ter o benefício de não ser processado criminalmente pelas acusações, ele precisaria confessar. Caso quisesse se defender com uma negativa, o processo correria normalmente — José seria processado pelo Ministério Público e teria direito a defesa e a um julgamento.
José, no entanto, resolveu confessar o crime. “Ele não explicou por que fez isso, mas chorou, pediu desculpas, e eu também me emocionei”, conta Fernanda.
Ele concordou com o acordo proposto pelo Ministério Público, proposto com base na conversa com Fernanda, que, como reparação, pediu apenas o dinheiro de volta. José teve que devolver os R$ 30 mil em várias parcelas — que ele terminou de pagar no meio do ano passado. Também teve que fazer uma doação a uma instituição de caridade que faz atendimento a vítimas de crimes — condição imposta pelo MP.
“Foi uma solução boa para todo mundo. Eu recebi o dinheiro de volta, ele não foi preso… Se fosse pelo procedimento normal, ele teria sido preso, teria a vida arruinada, sem contar a família, e eu continuaria sem o dinheiro”, diz a empresária.
“E o perdoei, sim. Não guardo nenhum tipo de rancor”, diz Fernanda, que também explica que isso não significa que confiaria novamente em José.
Celeste explica que, tendo cumprido todos os termos do acordo, José está livre para seguir com sua vida.
Fernanda gostou tanto do projeto que se ofereceu para ser voluntária — o formato de sua participação ainda não foi definido, mas provavelmente estará relacionado ao atendimento de vítimas de crimes como o que ela sofreu.
Regras do acordo
O acordo com o acusado só é possível em crimes para os quais a pena mínima é de até 4 anos e que não envolvam abuso sexual ou violência doméstica.
A novo “pacote anticrime” aprovado em dezembro no Congresso, trata do tema dos acordos feitos antes do início do processo judicial, os chamados acordos de não persecução penal (ANPP), negociados pelos MPs diretamente com os investigados.
Inicialmente, o projeto do ministro da Justiça, Sergio Moro, estabeleceria que somente crimes com pena máxima (e não mínima) de quatro anos de prisão poderiam passar por acordos — algo que teria excluído o crime cometido por José contra Fernanda, por exemplo.
No entanto, na passagem do projeto pela Câmera, o projeto original foi modificado e esse trecho retirado.
O texto final formaliza a possibilidade de acordos para crimes com pena mínima de até 4 anos e outras regras.
O acordo de não persecução penal com o MP não pode ser feito se o investigado for reincidente ou se houver provas de que sua conduta criminosa é frequente. Também não podem participar pessoas que já fizeram um acordo do tipo nos cinco anos antes do cometimento do crime.
Para a coordenadora do Avarc, o problema de muitos dos acordos feitos com os investigados é que a vítima não é ouvida no processo. “Se faz um acordo com a pessoa e vítima não é questionada em nenhum momento sobre como gostaria de ser preparada”, afirma Celeste. Ela diz ainda que o novo pacote não resolve o problema.
A ideia do Avarc é justamente incluir a vítima no processo. “Queremos evitar a vitimização secundária, que é quando a vítima sofre uma nova violência ao não ser acolhida no ambiente jurídico”, explica.
Para ela, isso é muito diferente de trazer sentimentos de vingança ou justiçamento para o direito criminal — pelo contrário. “Com o acordo, quem comete um crime se responsabiliza muito mais por seus próprios atos, o que é muito importante para evitar recaídas (no crime) e para a ressocialização”.
Atualmente o Avarc é um projeto do Ministério Público de São Paulo, iniciado no Fórum Criminal da Barra Funda, então só funciona na capital, em Pindamonhagaba, em Guarulhos e na Baixada Santista. Mas a ideia é expandir para o Estado todo — e até para o resto do Brasil.
“A ideia é criar um modelo que possa ser usado por todos os promotores”, afirma Celeste.
*o nome foi alterado para preservar a identidade do envolvido
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