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13/02/2020renovável em Portugal
Diversamente do que ocorre no Brasil, onde o excedente gerado pela unidade cria um crédito a ser utilizado nas contas de energia, em Portugal a energia gerada pela unidade, quando não totalmente consumida, pode ser vendida
OLIVIA GARCIA DE CARVALHO FREITAS, ADVOGADA Sócia do Franco Advogados
Recente conjunto de novidades no setor de energia de Portugal é inspiradora no sentido de demonstrar como pode evoluir a relação de negócios entre o Estado e os diversos atores com capacidade de serem ou se tornarem produtores de energia. Trata-se da nova lei que regula o autoconsumo de energia. A norma foi publicada no Diário da República de Portugal em 25 de outubro de 2019, com entrada em vigor em 01 de janeiro de 2020, o Decreto-Lei 162/2019 que regulamenta as novas regras para o autoconsumo de energia renovável, antes regulado pelo o Decreto-Lei n.º 153/2014.
As Unidades de Produção para o Autoconsumo indicadas na norma são um sistema de produção de energia através de fontes renováveis, destinado ao uso exclusivo de quem produz (no Brasil, mini e microgeração distribuída). Diversamente do que ocorre no Brasil, onde o excedente gerado pela unidade cria um crédito a ser utilizado nas contas de energia, em Portugal a energia gerada pela unidade, quando não totalmente consumida, pode ser vendida. Conforme descrito no sumário do novo decreto, é a atividade de produção descentralizada de energia elétrica “destinada ao autoconsumo na instalação de utilização associada à respetiva unidade produtora, com ou sem ligação à rede elétrica pública, baseada em tecnologias de produção renováveis ou não renováveis, designadas por Unidades de Produção para Autoconsumo. ”
Em Portugal, a regulação do autoconsumo surgiu com o Decreto-Lei 68/2002, que tratava do exercício da atividade de produção de energia eléctrica em baixa tensão para consumo próprio, assim entendido quando a produção de, pelo menos, 50% fosse destinada a consumo próprio, ou de terceiros, desde que a potência a entregar à rede pública não fosse superior a 150 kW. Desde então, a legislação tem evoluído. A grande alteração no processo se deu com relação à remuneração, que passou a ser, para os casos ordinários, pelo regime geral de mercado e para situações especiais, bonificado. Para fazer jus à bonificação, a unidade de produção deveria ter potência superior ao limite estabelecido para acesso ao regime bonificado e somente se utilizar de fontes de energia solar, eólica, hídrica, biogás, biomassa e pilhas de combustível com base em hidrogénio proveniente de miniprodução renovável. Ainda, era exigível a implementação de medidas de eficiência energética e a bonificação variava de acordo com a potência das unidades.
O Decreto-Lei 162/2019, flexibiliza as regras em relação ao controle de comunicação prévia de instalação, agora necessária apenas para unidades de produção com potência instalada acima de 350 W. O registro prévio e o certificado de exploração só são exigidos para unidades com capacidade superior a 30 kW. Para as unidades de produção com potência instalada superior 1 MW permanece inalterada a necessidade de obtenção de licença de produção e de exploração. Dessa forma, se desburocratiza o licenciamento, facilitando a ligação de unidades produtoras à rede.
O novo regulamento traz a possibilidade de uma unidade de produção ser individual ou coletiva, diversamente do que previa o anterior, somente “destinada ao autoconsumo na instalação de utilização associada à respetiva unidade produtora”. Os autoconsumidores coletivos são aqueles que, independente do nível de tensão das instalações estão “organizados em condomínios de edifícios em regime de propriedade horizontal ou não, ou um grupo de autoconsumidores situados no mesmo edifício ou zona de apartamentos ou de moradias, em relação de vizinhança próxima, unidades industriais, comerciais ou agrícolas, e demais infraestruturas localizadas numa área delimitada, que disponham de UPAC”. Dessa forma, a legislação permite que consumidores em relação de vizinhança se unam para investir na instalação de uma unidade produção a partir de fontes renováveis, e consumam, partilhem, armazenem e vendam o excedente da energia elétrica produzida, reduzindo, assim os custos com o investimento. Esse regime traz vantagens não só aos chamados consumidores domésticos, como também às empresas e indústrias que estejam localizadas numa mesma zona.
Quanto à necessidade de seguro de responsabilidade civil para reparação de danos causados a terceiros em razão da atividade de autoconsumo, o novo diploma inova ao exigir o seguro somente para as unidades sujeitas ao registro ou licença, ou seja, unidades com potência de 30 kW. Essa alteração visa, novamente, e de forma significativa, diminuir os custos para as unidades de produção para autoconsumo de menor potência, tendo, notadamente, como alvo o pequeno consumidor e o consumidor doméstico.
Há também novas regras e prazos para inspeção periódica. Antes as unidades produtoras com potência instalada superior 1,5 kW sofreriam inspeção a cada 10 anos quando a potência fosse inferior a 1 MW e a cada seis nos demais casos. Hoje as inspeções serão realizadas somente nas unidades com potência instalada superior a 20,7 kW, mantendo-se o prazo de dez anos para as com potência inferior a 1 MW e aumentando-se para oito anos nos demais casos.
A alteração de titularidade do contrato de fornecimento de eletricidade também muda. Anteriormente exigido o fornecimento de documentos comprovatórios para alteração da titularidade do contrato de fornecimento de eletricidade, com a entrada em vigor do novo diploma, faz-se necessário apenas que o novo titular solicite a averbação, aceitando todos os direitos e obrigações inerentes.
O preço de venda da energia excedente, com o novo decreto, passa a ser livremente pactuado entre as partes (pequenos produtores e comercializadores).
O novo decreto cria ainda o regime das Comunidades de Energia Renovável (CER), sendo esta “uma pessoa coletiva constituída nos termos do decreto-lei, com ou sem fins lucrativos, com base numa adesão aberta e voluntária dos seus membros, sócios ou acionistas, os quais podem ser pessoas singulares ou coletivas, de natureza pública ou privada, incluindo, nomeadamente, pequenas e médias empresas ou autarquias locais, que seja autónoma dos seus membros ou sócios, mas por eles efetivamente controlada, desde que e cumulativamente.”
Apesar da definição um pouco vaga, e tendo em vista tratar-se de novidade que carece de interpretação pela doutrina e jurisprudência, da leitura do texto (artigo 19º) é possível observar que o intuito com a criação da CER é o de fomentar ainda mais a produção para autoconsumo, onde uma pessoa coletiva produtora de energia renovável traz benefícios ambientais, econômicos e sociais aos seus membros ou às localidades onde estão inseridas, criando uma verdadeira comunidade de energia renovável. O consumidor final que resolva aderir a uma CER manterá intactos seus direitos e obrigações enquanto consumidor final.
A nova legislação surge com o “objetivo de reforçar a produção de energia a partir de fontes renováveis e de reduzir a dependência energética do país, o novo regime é criado numa ótica de complementaridade com o sistema elétrico nacional”. O Governo português pretende, dessa forma, desburocratizar o processo de licenciamento, incentivando novas unidades de autoconsumo com maior capacidade de produção, e aumentar a produção de energia descentralizada advinda de fontes renováveis, visando cumprir as metas previstas no Plano Nacional de Energia-Clima para 2021-2030, cada vez menos dependendo da produção de energia através de combustíveis fósseis.
Ademais, a nova lei transpôs parcialmente a Diretiva (UE) 2018/2001 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de dezembro de 2018, relativa à promoção da utilização de energia de fontes renováveis, incorporando ao sistema energético pátrio regras do Direito Europeu.
Assim, o novo decreto traz regras facilitadoras para a produção para autoconsumo em Portugal, possibilitando que, cada vez mais, pequenos produtores participem do mercado e contribuindo para o cumprimento das metas energéticas e climáticas.
Apesar dos vultosos investimentos que ainda se fazem necessários para instalação de uma unidade de produção para autoconsumo, a desburocratização do licenciamento, a possibilidade de compartilhamento dos gastos e a diminuição de despesas com seguro, tendem a diminuir os custos gerais e fomentar a produção de energia por esse meio. Espera-se que com o mercado mais aquecido e mais concorrido diminuam, também, os preços dos equipamentos e se evolua para uma política energética cada vez mais descentralizada e sustentável.
Como se vê, o novo regulamento guarda forte relação com o regramento em vigor no Brasil hoje em dia e segue uma tendência quase que mundial de incentivos em energia gerada a partir de fontes renováveis, sendo um importante contexto a ser observado para futuras alterações nas normas para mini e microgeração distribuída.
Olivia Garcia de Carvalho Freitas é advogada, sócia do Franco Advogados, responsável pela área de energia e infraestrutura, mestranda em Direito do Ambiente, Recursos Naturais e Energia pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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