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26/03/2020
Suspensão de contrato sem salário será revogada e outra MP deve substituir, mas outros pontos já foram definidos
23 mar 2020 20h11
SÃO PAULO – Na noite do último domingo (22), o governo Jair Bolsonaro publicou uma Medida Provisória (MP 927) que aborda regras trabalhistas temporárias na tentativa de combater os efeitos da pandemia do novo coronavírus na economia. O documento tem validade imediata, mas precisa ser aprovado pelo Congresso em 120 dias para não caducar.
Entre as medidas, flexibiliza-se férias coletivas, teletrabalho, antecipação de feriados, entre outros pontos da CLT. “O pacote de medidas oficializa situações que já estavam sendo usadas pelos empregadores como medidas para evitar demissões em massa, como antecipação de férias e banco de horas. O texto está claro e objetivo sobre esses pontos burocráticos”, afirma André Ribeiro, advogado trabalhista sócio-coordenador da área de Direito do Trabalho, Seguridade Social e Imigratório do escritório Dias Carneiro Advogados.
Luis Mendes, advogado trabalhista do escritório Pinheiro Neto Advogados, concorda com Ribeiro. “É muito pouco diante da complexidade do tema. Se a empresa não tem caixa para pagar salário o que vai fazer? Saindo da possibilidade da negociação coletiva já prevista em lei, não há base jurídica legal para tomar uma medida sem riscos agora”, defende.
Suspensão do contrato de trabalho
Entre as medidas anunciadas, a que gerou a maior repercussão e foi a suspensão do contrato de trabalho por até quatro meses.
O empregador poderia suspender o contrato do funcionário durante esse período sem pagar salário – embora mantivesse os outros benefícios como plano de saúde e vale alimentação, no caso de trabalhadores formais.
Mas em meio ao momento de pânico nos mercados e a repercussão negativa que esse artigo da medida em específico gerou, o presidente usou sua conta oficial do Twitter para informar que esse artigo será revogado.
Pelo texto, empresa seria obrigada a oferecer, ao longo desses quatro meses, cursos de qualificação ao funcionário afastado. Daniela Yuassa, advogada trabalhista do Stocche Forbes Advogados, explica que qualquer curso que ofereça uma certificação para o empregado e forneça uma qualificação profissional extra se encaixaria. “Tem que ser à distância e geralmente um curso atrelado à atividade profissional do trabalhador”, diz.
Luis Mendes advogado trabalhista do escritório Pinheiro Neto, argumenta que a medida ficou muito abaixo das expectativas. “Falta segurança jurídica para as empresas agirem. A grande expectativa era que sobre esse ponto: como contemplar formas alternativas de mitigar custos em relação aos pagamentos dos funcionários ao mesmo tempo que ofereceria condições plausíveis para os trabalhadores que não podem fazer o home office”, afirma.
Em entrevista coletiva dada nesta segunda-feira (23), Bruno Bianco, que comanda a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, disse que a medida de suspensão de contratos trazia aspectos não orçamentários, que não dependiam do esforço do Estado, mas que a intenção não era deixar o trabalhador sem receita.
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“Tão logo essa medida fosse editada, haveria uma outra que traria o apoio do Estado para com os empregados e os empregadores. O presidente revogou [o artigo 18] para que se traga um novo dispositivo com as duas coisas: a parte não orçamentária e a orçamentária juntas”, disse o secretário.
Assim, uma nova MP será divulgada incluindo esse novo dispositivo que trará a “possibilidade de suspensão e mais uma contraprestação por parte do Estado, sempre respeitando o salário mínimo”. “O presidente pediu celeridade e estamos conversando com todos os atores para soltarmos isso o quanto antes”, complementou o secretário.
Corte de 25% do salário previsto na CLT
Outra discussão é um possível corte de até 25% no salário que pode acontecer quando o trabalhador voltar desse período de suspensão de contrato.
O artigo 2 da medida indica que, durante o estado de calamidade pública, “o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição”.
Para alguns advogados consultados, esse trecho abre interpretações para um acordo entre empregador e funcionário que ultrapassa qualquer termo jurídico sendo o limite a Constituição Federal de 1988. Isso porque o artigo 503 da CLT permite um corte de até 25% no salário do funcionário em caso de força maior, só que ele é anterior à Constituição e não seria compatível com o texto da mesma.
Ribeiro, do Dias Carneiro Advogados, explica que o “acordo individual se sobrepõe à lei, acordo ou convenção coletiva se prever garantia de emprego, mas a Constituição Federal exige acordo ou convenção coletiva para reduzir salário. Assim, interpretar esse artigo como equiparado o acordo individual à convenção coletiva poderá ser questionado no judiciário”. Segundo ele, a posição majoritária da Justiça do Trabalho é que o artigo 503 da CLT não poderia ser aplicado hoje.
Daniela Yuassa, do Stocche Forbes, também acredita que o texto abre brecha para uma renegociação de salário. “Mas quando olhamos a jurisprudência, essa situação não é aplicada. Entendo que esse artigo não foi recepcionado pela Constituição que prevê irredutibilidade salarial mediante acordo coletivo. Ou seja, a constituição não validou esse dispositivo”, explica.
Sofia Ribeiro, advogada trabalhista do Moreau/Valverde Advogados, por outro lado, acredita que não existe a possibilidade de redução de salário nessas condições. “A legislação diz que o empregado não pode ter seu salário diminuído se não for mediante a acordo coletivo. O Sindfast, sindicado dos trabalhadores de fast food, negociou antes dessa MP existir uma redução de salário com as empresas do setor proporcional à redução de jornada. Isso é permitido. Com os dispositivo atuais, isso não é possível no formato negociação individual”, diz.
E se caducar?
Daniela, advogada do Stocche Forbes Advogados, explica que, se o funcionário tem seu salário suspendido e, por algum motivo, a MP não é aprovada e não é convertida em Lei, não há como o trabalhador reaver seu salário, por exemplo. “Ainda precisamos esperar para ver o que a nova MP vai apresentar, mas os atos praticados de acordo com o que estava previsto na MP 927 estão em vigor e são válidos. Se o Congresso decidir não transformar a MP em Lei, o que está no texto perde a validade e vida que segue”, diz.
Mas há uma exceção: “se não houver a transformação em Lei e o Congresso criar um decreto legislativo regulando os efeitos dessa MP, aí o cenário muda. É como se o Congresso aplicasse algumas regras sobre o que a MP fez após derrubá-la. Mas são hipóteses.
Seguro-desemprego não foi mencionado
A medida não fez nenhuma menção ao acesso ao seguro-desemprego pelos trabalhadores. Segundo Mendes, do Pinheiro Neto, o não acesso dos trabalhadores ao seguro-desemprego só complica ainda mais a situação dessas pessoas. “Ainda que não estejam desempregados, considerando a situação de pandemia, seria ideal que os trabalhadores recebessem uma quantia enquanto não estivessem trabalhando, [que poderia ser] oriunda do seguro-desemprego. Bastava mudar quando o trabalhador teria direito a usar esse dinheiro. É um dispositivo possível”, diz.
Pierre Moreau, advogado sócio do Moreau/Valverde Advogados, acredita que o seguro-desemprego não é uma medida destinada a esse caso. “As regras continuam valendo, o seguro-desemprego é para quem é demitido. Nesse caso, seria uma suspensão de trabalho e devem vir normas regulamentado especificamente a utilização do seguro-desemprego, já que um número elevado de pessoas vão solicitar esse benefício”, afirma.
As medidas anunciadas
As medidas anunciadas que não devem ser revogadas por Bolsonaro são as seguintes:
- teletrabalho;
- antecipação de férias individuais;
- concessão de férias coletivas;
- o aproveitamento e a antecipação de feriados;
- banco de horas;
- suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;
- diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O teletrabalho, antecipação de férias, feriados e concessão de férias coletivas, banco de horas e o diferimento do recolhimento do FGTS praticamente vieram de acordo com o esperado, que está explicado neste texto.
Mas os especialistas comentaram alguns nuances das medidas.
Antecipação de férias, feriados e concessão de férias coletivas
Sofia, do Moreau/Valverde Advogados, afirma que nada disso é novidade ou algo distante do que já vinha sendo feito pelas empresas. “A medida endereça questões quase burocráticas como aumento de prazos para agilizar alguns pontos. Agora os empregadores podem avisar seus empregados com apenas 48 horas de antecedência sobre as férias individuais ou coletivas. E o pagamento das férias pode ser parcelado e feito até o prazo do pagamento do 13º salário, em 20 de dezembro”, explica.
No caso das férias coletivas, o Ministério do Trabalho não precisa mais ser informado: basta formalizar por e-mail o aviso. No caso de abono pecuniário, que permite a venda de férias, fica a critério da negociação entre empregado e empregador, sendo que o segundo não tem obrigatoriedade de fazer o pagamento dada a situação, segundo a explicação de Sofia.
Banco de horas
Neste caso, o prazo para fazer uso do banco de horas foi estendido para 18 meses após o encerramento do Estado de Calamidade, em dezembro. “Mas as regras de duas horas diárias totalizando no máximo 10h por dia permanecem. É uma espécie de antecipação das horas. Então, o funcionário não trabalha agora usando as horas extras, mas lá na frente não será pago pelo período que trabalhar a mais porque já usou o banco agora devido à situação”, explica Sofia.
Suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho
As empresas ficam livres da obrigatoriedade da realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares, exceto os exames demissionais. Profissionais da saúde são exceções neste momento, dada a circunstância, de acordo com os advogados consultados.
Teletrabalho
O teletrabalho foi regulamentado em todo o território nacional. Importante frisar que o teletrabalho não é o home office, portanto, a situação atual de muitos profissionais não se encaixa tecnicamente nas regras desta modalidade.
Na prática, essa é uma forma de trabalhar sem estar presente na empresa e com tecnologias que tornem o dia a dia de trabalho possível.
“Ou seja, não é que o profissional tem uma mesa no escritório e trabalha de casa duas vezes por semana. Ele simplesmente não está na empresa, eventualmente vai visitar um cliente ou vai em um reunião, mas o trabalho regular é fora da companhia. E esse tipo de contrato tem algumas definições bem específicas: quem paga energia, custo gerais, notebook, cadeiras ergonômicas, etc. Tem que está tudo por escrito”, afere Ribeiro, do Dias Carneiro.
Ele explica que, em situações normais, quem tem trabalho regular e passa para o teletrabalho deve assinar um aditivo contratual explicando a mudança e as alterações de contrato, além de seguir um período de 15 dias antes de mudar de um para o outro.
“Talvez com a regulamentação, eles facilitem essa burocracia. Pode ser que o aditivo deixe de ser necessário e as partes formalizem a mudança de contrato por e-mail ou por um canal oficial da empresa definindo as regras e o controle de jornada. Poucas empresas estão fazendo esse aditivo contratual hoje. Tudo acontece muito rápido, não dá tempo”, afirma.
Sofia complementa que, se por ventura o empregador não tiver condições de fornecer equipamentos e nem o funcionário puder pagar por eles, se alterado o contrato de formal para teletrabalho, o empregado passa a se enquadrar na condição de “à disposição do empregador”, o que significa ele receberá um terço do respectivo salário/hora.
FGTS
Para dar mais capital de giro para as empresas, o governo suspendeu por três meses o prazo para empresas pagarem o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e também a parte referente à parcela da União no Simples Nacional, de acordo com a nota do Ministério da Economia.
Por fim, Daniela, do Stocche Forbes Advogados, afirma que o problema dessas medidas é que solucionam o problema nos próximos 30 dias. “Tudo isso funciona. Mas e se precisarmos ficar por dois, três meses o empregador vai antecipar três anos de férias do funcionário? Por isso a necessidade de outra medida urgentemente”, diz.
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