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ARTIGO
Olivia Garcia de Carvalho Freitas, Advogada, Sócia do Franco Advogados
Esta falta de regulação causa uma tremenda insegurança jurídica, seja às empresas seja aos proprietários, aumentando, muitas vezes, os custos e desestimulando, de certa forma, os investimentos, tão necessários para o cumprimento das metas energéticas
Com o avanço nas tecnologias e incentivos à exploração de potenciais eólicos e solares, surgiu a necessidade de utilização de terrenos rurais privados para a exploração do potencial energético, visto que as terras têm maiores dimensões, capazes de comportarem os parques, bem como terem maior facilidade de captação dos recursos. Com o crescimento do setor surgiram novos conflitos agrários e a necessidade de regulamentação. Ocorre que a legislação não acompanhou o desenvolvimento energético nesse sentido, deixando um verdadeiro vácuo legislativo, sujeito a interpretações diversas.
Especificamente com relação à forma contratual a ser utilizada, não há no Brasil um consenso de qual seria a figura ideal adotada. Esta falta de regulação causa uma tremenda insegurança jurídica, seja às empresas seja aos proprietários, aumentando, muitas vezes, os custos e desestimulando, de certa forma, os investimentos, tão necessários para o cumprimento das metas energéticas.
Tendo em vista a falta de regulação específica, as empresas de energia se veem compelidas a “escolher” uma modalidade contratual que mais se adapte aos seus próprios entendimentos.
Inicialmente no Brasil os contratos para o uso da terra eram denominados de “Arrendamento”, sem, contudo, serem fundamentados na Lei de Arrendamento Rural. Isto porque as empesas de energia entendiam que a utilização da terra para implantação de parques eólicos e solares não estaria abrangida pelas atividades listadas no artigo 1º da referida lei.
Contudo, tendo em vista que o potencial energético através de parques eólicos e solares é comumente explorado por empresas cujo controle é estrangeiro, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) negou financiamento às empresas por entender que se aplicava a Lei de Arrendamento Rural e que, em razão de um parecer da Advocacia Geral da União (AGU), estas empresas estariam impedidas de firmar tais contratos.
Neste ponto, cumpre esclarecer: anteriormente à equiparação das sociedades constituídas sob a égide da legislação brasileira que, contudo, eram controladas por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras às sociedades estrangeiras (sujeitas às restrições impostas pela Lei nº 5.709/71) já havia sido contestada. O artigo 171 da Constituição Federal de 1988 (CF) considerava brasileira qualquer empresa constituída sob as leis brasileiras e com sede e administração no País, sem distinção quanto à composição de seu capital social.
Em parecer de 1994, a Advocacia Geral da União (AGU) reconheceu a não recepção do artigo 1º, § 1º da Lei n° 5.709/71 pela CF e afastou as restrições à aquisição de terras por empresas brasileiras com maioria de capital formada por estrangeiros. Este artigo foi posteriormente revogado pela Emenda Constitucional nº 6/95, sendo o entendimento revisto pela AGU.
Neste novo parecer a AGU analisou novamente a possibilidade de aquisição e arrendamento de terras realizadas por empresas brasileiras cujo controle acionário e o controle de gestão estivessem nas mãos de estrangeiros e firmou entendimento no sentido da constitucionalidade da equiparação de sociedade estrangeiras à sociedades brasileiras com maioria de capital social de titularidade de pessoas estrangeiras naturais ou jurídicas que residam ou tenham sede no exterior, desde que, além da maioria do capital social por estrangeiros, esses também possuam controle efetivo sobre a empresa. Este parecer é vinculativo à toda Administração Federal.
Dessa forma, segundo o entendimento da AGU, a pessoa ou empresa estrangeira que pretenda arrendar imóvel rural deve observar diversos parâmetros legais, em especial aqueles impostos pela Lei n° 5.709/714, pelo Decreto n° 74.965/745 e pela Lei n° 8.629/936. Os requisitos incluem autorização do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e limitações de extensão das áreas adquiridas ou arrendadas.
Posteriormente, o Conselho Nacional de Justiça publicou o provimento nº 43/2015 onde declara ser imprescindível a formalização por escritura pública de contratos de arrendamento de imóvel rural celebrados por pessoa física estrangeira residente no país, pessoa jurídica estrangeira autorizada a funcionar no Brasil ou pessoa jurídica brasileira com participantes estrangeiros que detenham a maioria do capital social. Também passa a ser necessária a autorização do Incra, que deve ser solicitada pelo interessado à autarquia e terá validade de 30 dias.
Segundo o provimento, imóveis rurais que se encontram em comarcas ou circunscrições limítrofes devem ser registrados em todas elas, com a informação dessa especificidade. Caso o imóvel esteja situado em área indispensável à segurança nacional, a Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional deve ser consultada. A nova norma prevê um acompanhamento dos registros a cada três meses, os oficiais de registros de imóveis devem remeter às corregedorias regionais e às repartições do Incra informações sobre arrendamentos praticados por estrangeiros.
Dentre as limitações impostas pela Lei nº 5.709/71, Provimento nº 43/2015 em conjunto com o Decreto nº 74.965/74, uma das mais relevantes é a necessidade de autorização do Incra para aquisição de propriedade e para o arrendamento de imóveis rurais. Como o Incra não tem prazo legal para autorizar ou proibir as operações, o processo pode levar meses ou até anos, o que praticamente inviabiliza o investimento estrangeiro ou incentiva a adoção de estruturas para contornar as restrições legais.
Com a negativa do BNDES houve uma corrida contra o tempo para alteração dos contratos, passando-se a denomina-los como Cessão de Uso. Importante observar que a alteração dos contratos se deu única e exclusivamente em sua nomenclatura, visto que seu conteúdo permaneceu o mesmo, com mesmo objeto, prazos e forma de remuneração, tendo sido excluído tão somente o direito de preferência na aquisição, o que fere por completo o princípio da instrumentalidade. Contudo foi a forma encontrada pelas empresas para cumprir os prazos estabelecidos na regulação da exploração e, tendo em vista a morosidade com que a justiça resolve questões desta natureza, não haveria tempo hábil para se discutir o cabimento da exigência.
Nesse contexto há série de críticas à exigência do BNDES e ao entendimento da AGU e do CNJ. Primeiramente há que se verificar se, efetivamente, estamos falando de um arrendamento rural nos moldes da lei. Será possível considerar a exploração de potencial eólico e solar como extração de recursos naturais? Em que pese ter sido intitulado primeiramente como Arrendamento, está a instalação de parques eólicos e solares englobada na Lei de Arrendamento Rural? Se assim for, a simples alteração no nomen iuris do contrato tem o condão de afastar a aplicação da lei?
Assim, a exigência do BNDES se mostra totalmente descabida. Alterar o nome do contrato não muda sua essência. Se estamos falando de Arrendamento nos moldes da Lei de Arrendamento Rural, chama-lo de Cessão de Uso não altera o enquadramento legal. O que pretendeu o BNDES com a aceitação dessa alteração foi evitar um debate jurídico que poderia resolver a questão.
Ainda que se considere o enquadramento, há que se ponderar a constitucionalidade dessa interpretação. Em que pese o artigo 190 da CF prever que “A lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional”, o artigo 5º do mesmo diploma determina que são todos iguais perante a lei, sejam brasileiros ou estrangeiros residentes no País. Logo, ainda que se entenda aplicável a Lei de Arrendamento Rural por se tratar de extração de recursos naturais, uma empresa constituída sob as leis brasileiras e com sede no Brasil não deveria ter tratamento diferenciado para arrendamento, sendo, portanto, inconstitucionais as previsões legais que embasaram o Parecer da AGU e o Provimento do CNJ.
Em se enquadrando a atividade como extrativista e, portanto, sujeita aos preceitos da Lei de Arrendamento Rural, as restrições impostas segundo o Parecer da AGU e o Provimento do CNJ importam em entrave econômico que refletirá diretamente no desenvolvimento energético do País, hoje um setor em franco crescimento, e necessário para que cada vez menos se dependa da produção de energia através de combustíveis fósseis, cumprindo com metas energéticas e climáticas assumidas.
A matéria está atualmente sendo discutida por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 342, em curso no Supremo Tribunal Federal.
Olivia Garcia de Carvalho Freitas é advogada, sócia do Franco Advogados, responsável pela área de energia e infraestrutura, mestranda em Direito do Ambiente, Recursos Naturais e Energia pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
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