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08 de maio de 2020 | 07h30
Enquanto escrevemos este texto em maio de 2020, a sociedade humana enfrenta uma pandemia de um vírus com considerável poder de letalidade, denominado “covid-19”, para qual, ao menos neste momento, não existe tratamento, vacina e, pior, nem conhecimentos médicos suficientes para enfrentá-lo de maneira eficaz. Ele desenvolve nos seres humanos, em geral, uma síndrome respiratória grave, exigindo, que um considerável número de infectados tenha que ser atendido em Unidades de Terapia Intensiva – UTI, permanecendo nessa condição grave por vários dias, situação que coloca em xeque os sistema de saúde de quase todos os países do mundo.
Isso acontece, quando já se acreditava, como afirma Byung-Chu Han em a “Sociedade do Cansaço” que “cada época possuiu suas enfermidades fundamentais. Desse modo, temos uma época bacteriológica, que chegou ao seu fim com a descoberta dos antibióticos. Apesar do medo imenso que temos hoje de uma pandemia gripal, não vivemos numa época viral. Graças à técnica imunológica, já deixamos para trás essa época”. Descobre-se, todavia, repentinamente, que continuamos a viver em uma época viral, além da neuronal tão bem estudada por Byung-Chu Han.
Pode-se dizer que nos últimos tempos, os debates nas mais diversas nações giraram em torno dos efeitos sociais e econômicos da Revolução 4.0, da disrupção tecnológica e do temor do aprofundamento das desigualdades sociais que ela pode trazer, agravando a crise da própria democracia como ordem capaz de promover o bem-estar e a proteção social. Não foi preciso que a disrupção tecnológica chegasse ao seu ápice para que a chaga da desigualdade assolando a democracia se mostre de forma nua e crua, basta uma pandemia gripal.
É nesse momento de crise aguda que se pode avaliar os caminhos que devem ser trilhados para a proteção social e quais os limites da participação do Estado nesse desenho protetivo. Quando em uma pandemia se coloca em xeque os sistemas de saúde de diversos países, se tem o pleno reconhecimento que a garantia da vida é papel do Estado em qualquer regime político, democrático ou não, bem como quais os melhores modelos para que ele exerça esse papel na proteção à saúde.
No Brasil o contágio por covid-19 está em ritmo acelerado, com elevadíssimo número de mortes e, de fato, o sistema de saúde não estava preparado, situação também enfrentada pelo resto do mundo. No entanto, o SUS – Sistema Único de Saúde, ainda se mostra como um modelo essencial na proteção à saúde, pois ele ao mesmo tempo que prestigia a democracia atendendo à todos sem distinção, traz em seu bojo mecanismo de divisão de competências entre os entes federativos que se bem estabelecido o faria imbatível na proteção da sociedade.
A conquista do SUS é um direito que a sociedade brasileira não deveria permitir jamais que lhe fosse retirado, pois é um modelo que protege a todos, o que é de extrema importância em momentos de crises sociais e econômicas. A grande questão que a pandemia nos coloca é de como proteger aquele grupo de pessoas, por exemplo, que está desempregada ou que pertence ao mercado informal de trabalho ou, ainda, que exerce trabalho autônomo. A grande conquista está justamente nesse ponto, todos podem receber proteção à saúde, independentemente de sua condição social.
No início dos anos 80, o modelo de assistência pública à saúde vigente desde a década de 70 era prestada pela previdência social alcançado apenas aquelas pessoas possuíam vínculo formal de trabalho e, que por esta razão, podiam se filiar à previdência social. Este modelo já estava em patente declínio, razão pela qual, em 1981, foi constituído o Conselho Consultivo de Administração da Saúde Previdenciária – CONASP, composto por profissionais da medicina, representantes de vários ministérios, trabalhadores, sindicatos e empresas médicas, com o objetivo de reorganizar a assistência médica nacional, fundamental para a abertura democrática nesse segmento.
Uma das medidas adotadas pela ação do CONASP, foi a criação do Programa de Ações Integradas da Saúde (AIS), viabilizando a articulação entre o então INAMPS e o Ministério da Saúde e as Secretarias Estaduais de Saúde, de modo a formar uma rede pública unificada. Na Nova República, a visão para o setor de saúde era a de ampla descentralização das ações, com a transformação das AIS no Sistema Único Descentralizado de Saúde – SUDS. O objetivo era fortalecer o setor público e enfraquecer o segmento privado contratado pelo INAMPS, melhorando o segmento privado filantrópico. O objetivo do SUDS era a universalização do acesso a cuidados de saúde, bem como, ao mesmo tempo, racionalizar custos e o uso de recursos através da unificação dos serviços de saúde dos subsetores previdenciário e de saúde pública.
Para o desenvolvimento desse modelo, foi de suma importância a VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, cujo Relatório Final foi tomado como base pelos constituintes para elaboração do modelo finalmente estampando na Constituição Federal de 1988, retomando-se a visão democrática da saúde, que não se encaixa na mera ausência de doença, mas sim no bem-estar físico, mental e social. A institucionalização do direito à saúde, sepulta o modelo excludente do seguro social, até então adotado pela previdência social. Na verdade a chamada “Reforma Sanitária” iniciou a reconstrução da relação Estado-sociedade.
A universalidade foi selada na Constituição Federal de 1988 no “Art.196 – A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” e pavimentado um caminho para a sua concretização por meio do SUS, cujo funcionamento está detalhado na Lei Orgânica da Saúde – Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990.
O SUS está definido no artigo 4º, caput, da Lei nº 8.080 de 1990 como “o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por seus órgãos e instituições públicas, federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo poder público, podendo a iniciativa privada atuar em caráter supletivo”. Assim, o SUS nasce da necessidade de reformulação do segmento de saúde, na tentativa de conciliar a ampliação de cobertura e a contenção de cobertura e das despesas. As demandas cresceram em decorrência do modelo de universalização da saúde, bem como da exigência deste modelo na diversificação da cobertura.
Estruturalmente, o SUS está organizado em uma rede regionalizada e hierarquizada, ou seja, em espaços populacionais preestabelecidos e segundo um critério de complexidade tecnológica. Em outras palavras, o SUS está fundamentado em princípios de descentralização, participação da comunidade, priorização das atividades preventivas, direção única em cada esfera de governo e atendimento integral.
Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição Federal de 1988, não há dúvida de que o SUS é um sistema abrangente, oferecendo cobertura a uma população de mais de 200 milhões de habitantes, desde o atendimento primário aos de alta complexidade, com o fornecimento de medicamentos e de vacinas gratuitamente, realizando pesquisas na área epidemiológica, além de realizar a vigilância sanitária. Além da universalidade da cobertura, com o oferecimento de atendimento integral, o SUS possui gestão descentralizada, com a participação social. É um modelo pleno de proteção social.
Desde a Constituição Federal de 1988, é fato, que a questão do financiamento do SUS nunca foi totalmente superada, pois o modelo para se sustentar de maneira eficiente precisa de perenes fontes de custeio, as quais nem sempre são priorizadas pelos entes federativos. Mas, neste momento de intensa crise, não deveria haver nenhuma dúvida no seio da sociedade de que o SUS é uma conquista que deve ser intensamente preservada, porque, ao fim e ao cabo, é ele que está servindo como pilar principal no atendimento durante a pandemia. Sem ele o Brasil estaria muito pior para enfrentar uma situação tão crítica como esta que se está vivendo.
Parece claro que o Sistema Único de Saúde não estaria tão sobrecarregado se houvesse, por exemplo, saneamento básico nas cidades, controle ambiental, políticas saudáveis, educação para a saúde, entre outras medidas de sustentabilidade social. A atenção curativa não seria, assim, a meta principal de um modelo jurídico que não foi engendrado para esse fim.
O direito à saúde é coletivo e é deste modo que deve ser observado. Pode-se dizer que não existe um quinhão de saúde para cada indivíduo, existe sim, o uso coletivo de um sistema que é construído e se desenvolve com o esforço de todos, dentro do conceito de comunidade. No seio da comunidade brasileira a defesa do SUS é um dever a ser exercido constantemente.
*Ana Paula Oriola De Raeffray, doutora em Direito das Relações Sociais e professora em Direito Previdenciário na PUC/SP, sócia do Raeffray e Bruggioni Advogados
*Pierre Moreau, professor do do Insper – SP, membro do conselho fiscal do Hospital Sírio Libanês, professor visitante na University of St. Gallen, Suíça, sócio do Moreau Valverde Advogados
Leia no Blog do Fausto Macedo do Estadão aqui.