Revista Conceito Jurídico | Artigo: Veto da MP 936 – O que, de fato, a sociedade deve exigir sobre a desoneração da folha
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03/08/2020Por Alessandra D’Elia
A Medida Provisória 927/2020 (“MP 927” ou “MP”), editada em 22 de março de 2020, caducou no último domingo, 19, por não ter sido votada a tempo pelo Senado Federal. Referida MP, editada logo no início da pandemia do coronavírus, flexibilizava a legislação trabalhista em vigor e permitia a adoção de medidas excepcionais durante o estado de calamidade pública, para enfrentamento da crise dela decorrente.
Agora, com a queda da MP, muitas empresas se vêm diante de um cenário de incertezas e insegurança jurídica. Isto porque, embora as medidas adotadas durante o período de vigência da MP – 22 de março a 19 de julho de 2020 – estejam respaldadas pela norma válida à época, algumas medidas de trato sucessivo podem gerar dúvidas.
Como ficarão, por exemplo, os bancos de horas ajustados durante a vigência da MP 927, que previam a compensação de horas em até 18 (dezoito) meses e hoje acumulam expressivos saldos negativos? O prazo para compensação deverá ser reduzido, de modo a adequar referidos pactos aos termos da CLT?
E as férias antecipadas concedidas antes da MP caducar? Será necessário interrompê-las? E os feriados futuros já antecipados pelas empresas, deverão ser concedidos novamente?
Como ficam, ainda, os contratos de teletrabalho, em especial aqueles firmados com estagiários e aprendizes, eis que a legislação em vigor é silente sobre esta possibilidade?
Estas são apenas algumas das muitas dúvidas decorrentes da caducidade da MP 927.
Todas estas questões e as relações jurídicas delas decorrentes poderão ser disciplinadas pelo Congresso Nacional em até 60 dias, por meio de um decreto legislativo, conforme previsão do artigo 62, § 3º e § 11, da Constituição da República. No entanto, considerando os aspectos políticos envolvendo a não votação da MP 927 pelo Senado e não estando o Congresso Nacional obrigado a editar referido decreto, não é possível afirmar que isto irá ocorrer.
Resta aos empregadores, assim, com adequado suporte de seus respectivos advogados internos e externos, a busca por soluções viáveis para cada uma das situações destacadas acima.
A título de exemplo, no que diz respeito ao banco de horas, a MP 927 permitia a pactuação em uma modalidade especial, com a compensação das horas acumuladas em um prazo elastecido, de até 18 meses após o fim do estado de calamidade pública. Tal pacto, embora válido se firmado quando a MP estava em vigor, gera insegurança jurídica quanto à possibilidade de se continuar acumulando horas após a caducidade pelo prazo elastecido, eis que o artigo 59 da CLT é expresso ao afirmar que o banco de horas admite compensação no período máximo de 6 (seis) meses, em caso de acordo individual, ou 1 (um ano), em caso de negociação coletiva.
Certamente haverá quem defenda ser possível continuar acumulando horas para compensar em até 18 meses, ao argumento de que a celebração do acordo à época da MP configura um ato jurídico perfeito e acabado. Em contrapartida, haverá quem defenda a necessidade de adequação do pacto aos limites previstos na CLT, ou seja, aos prazos máximos de seis meses ou um ano. Uma solução intermediária conservadora, no entanto, pode ser a segregação das horas em dois grupos: (i) a das acumuladas durante a vigência da MP, para compensação em até 18 (dezoito) meses após o período de calamidade pública; e (ii) a das acumuladas a partir do dia 20 de julho, cuja compensação se submeteria aos prazos máximos previstos na CLT.
Em relação à antecipação de férias e feriados, o que tiver sido acordado e usufruído durante a vigência da MP não comportará maiores questionamentos. Parece bastante razoável, inclusive, que as férias antecipadas que tiveram seu período de fruição iniciado quando ainda vigorava a MP sejam usufruídas até o seu termo final, ainda que este se dê após o dia 19 de julho. É preciso cautela, entretanto, em caso de férias antecipadas deferidas quando a MP ainda vigorava, mas cujo início do período de gozo tenha sido fixado após 19 de julho, na medida em que a legislação atualmente em vigor não permite a antecipação de férias do período aquisitivo em curso.
No que tange ao teletrabalho, certo é que o instituto já possuía regramento próprio na CLT, tendo a MP 927 basicamente flexibilizado: (i) o prazo para alteração do regime presencial para o teletrabalho; e (ii) a possibilidade de início por ato unilateral do empregador, posto que a CLT exigia acordo entre as partes. Assim, a caducidade da MP não trará muitos impactos para o teletrabalho, sendo necessário, contudo, observar os regramentos da CLT quando de eventual alteração contratual relacionada ao assunto, como o retorno dos empregados para o regime presencial.
No mais, ainda em relação ao teletrabalho, muito embora a CLT não preveja a sua aplicabilidade aos aprendizes e estagiários, como previa a extinta MP, certo é que inexiste também qualquer vedação expressa em lei. Logo, havendo acordo entre as partes e ficando demonstrada a manutenção do caráter educacional dos contratos firmados com aprendizes e estagiários, com adequado acompanhamento e supervisão, parece viável a defesa de sua continuidade, inclusive em nome da saúde e segurança de tais colaboradores neste contexto de pandemia.
Vale lembrar, contudo, que estas e outras dúvidas decorrentes da caducidade da MP 927, se não forem dirimidas por eventual decreto legislativo, poderão gerar controvérsias entre empregados e empregadores, as quais, em última análise, ficarão sujeitas à análise concreta do Poder Judiciário, a quem competirá dirimi-las.
*Alessandra D’Elia, advogada em WFaria Advogados