Desoneração da folha de pagamento: O que de fato deve ser exigido pela sociedade?
12/08/2020ANS pensando na sustentabilidade dos planos de saúde
13/08/2020Por Monique Rodrigues do Prado.
Opinião / 17:38 – 12 de ago de 2020
O histórico ano de 2020 tem mobilizado discussões profundas sobre a humanização e a reivindicação da manutenção dos direitos sociais frente a um cenário desenfreado de exploração do trabalhador, desigualdades sociais e enriquecimento de uma camada específica que se beneficia das contradições do capital. É nesse cenário que estamos vendo a paralisação dos trabalhadores de entrega de aplicativos.
Assim, se o contexto de difusão de tecnologia e a criação de aplicativos de entrega rápida permite a otimização do tempo de quem é usuário em razão das intermináveis atividades cotidianas dadas pelo trabalho, estudos, lazer, família etc.; de outro lado as relações de trabalho estabelecidas entre os donos desses aplicativos e entregadores resultam na precarização do trabalho.
Não é possível ignorar a consequência direta das reformas – Trabalhista e Previdenciária – nessas relações, ampliando as discussões sobre a interferência do Estado como regulamentador das relações de trabalho à luz do Estado de Bem Estar Social observando como a intervenção mínima dele a partir de das concepções do Estado Liberal prejudica o trabalhador.
Os que advogam alegando a precarização dessa categoria de profissionais que abarca motoristas de Uber, entregadores de aplicativos como a Rappi, o iFood e o UberEats, sustentam o denominado fenômeno da uberização, termo cunhado exatamente com base na empresa Uber, que transmutou o modelo de organização de trabalho reduzindo drasticamente as condições sociais e humanas de trabalho.
Os que são contra a lógica estabelecida por esses aplicativos nos alertam para o fato de que enquanto os idealizadores dos aplicativos ficam cada vez mais ricos, os entregadores sequer possuem qualquer vínculo empregatício, assumindo os riscos na execução da entrega sem que as empresas sejam responsabilizadas, seja na manutenção desse trabalhador com o oferecimento do aparato necessário como celular, bolsa térmica e jaquetas, seja na eventualidade de acidente de trabalho, estando completamente desprotegidos.
Infelizmente, as relações de trabalho – que pela legislação trabalhista exige a comprovação de que o empregado seja pessoa física que preste serviço não eventual ao empregador, sob dependência deste e mediante salário – tem sido afrouxada pelos juízes, pois há um entendimento massivo de que essa modalidade de profissionais tem controle sobre as suas horas de trabalho, já que podem iniciar e terminar a sua jornada no momento que decidir.
Entretanto, quem advoga pela prevalência da proteção integral aos trabalhadores constantemente entra com ações para fazer com que essas poderosas empresas assumam o risco da atividade trabalhista desempenhada por esses entregadores e motoristas.
É nesse sentido que decisões minoritárias e corajosas de juízes têm nos provocando a pensar sobre como serão protegidos os trabalhadores nesse novo cenário tecnológico.
Assim, marchando contra a maré, o juiz de Campinas Bruno da Costa Rodrigues, do Tribunal Regional da 2ª Vara do Trabalho da 15ª Região, decidiu pelo reconhecimento do vínculo empregatício rechaçando a hipótese de que trata-se exclusivamente de plataforma digital “facilitadora”, mas sim “tomadora de serviços”, já que, entre outros fatores, possui total controle sobre a precificação, o cadastramento dos usuários, bem como as penalidades impostas aos motoristas.
A decisão ainda chama atenção ao fato de que “não podemos admitir ‘fantasias’ e ‘alegorias’ jurídicas ou normativas que tentam ocultar deliberadamente uma escancarada exploração de trabalho em atividade econômica”, referindo-se a forma como foi estabelecido o contrato de adesão da empresa Uber como “roupagens formais” que desviam a proteção social.
Esse entendimento também poderia ser estendido aos aplicativos de comida, pois ninguém procura as plataformas como apenas uma facilitadora, ou seja, as pessoas costumam dizer “vou pedir iFood”, “vou pedir UberEats”. É o que decidiu o desembargador Francisco Ferreira Jorge Neto na 1ª Turma do TRT da 2ª Região no processo 1000963-33.2019.5.02.0005 em relação à empresa Rappi, entendendo que há pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação.
No acórdão ficou estabelecido que o serviço de entrega exige a pessoalidade, já que é feito um cadastramento pessoal e intransferível; há onerosidade, pois o entregador presta serviço de cunho pecuniário; o serviço é prestado de forma contínua e não-eventual; e, por fim, há subordinação, pois o entregador está submetido ao tempo de entrega imposto pelo aplicativo e a classificação do entregador cuja pontuação repercute na divisão dos pedidos entre entregadores.
Por outro lado, quem adota a posição majoritária, desfavorável ao trabalhador-entregador e com a consequente inexistência de vínculo empregatício, sustenta que as plataformas digitais são apenas uma forma de inteiração dinâmica e mútua de maneira que os entregadores podem inclusive conectar-se com aplicativos concorrentes, o que descaracteriza a dependência. Além disso, trabalham na hora e no dia em que querem, reiterando o caráter eventual; e recebem por prestação de serviço feita, o que desnatura a obrigação salarial.
As empresas qualificam os entregadores e motoristas como parceiros e não empregados e ressaltam o fato de que o profissional tem total controle sobre sua rotina não havendo metas a serem cumpridas, chefe ou supervisor a quem o profissional responda.
Esse é o entendimento que predomina no Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal Superior do Trabalho, que localiza esses profissionais na qualidade de autônomos, segundo o qual sustentam que não há relação de trabalho, pois os aplicativos exercem um papel de aproximação entre motoristas/entregadores e clientes, não havendo relação de hierarquia entre as pessoas envolvidas.
Os defensores desse formato de trabalho acentuam que essa maneira de interação decorre de uma mentalidade sharing economy (economia compartilhada) em que a prestação de serviços das mais diversas áreas são intermediadas por empresas de tecnologia, razão pela qual os trabalhadores passam a ser empreendedores individuais.
Esse entendimento desfavorável ao trabalhador também prevaleceu na ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em São Paulo, onde a juíza Shirley Aparecida de Souza Lobo posicionou-se no sentido que “observado o contrato de emprego sem romantismo, é de se esperar que haja uma parcela significativa da população com habilidades, capacidades e ânimo para o trabalho de outra forma que não em contrato de emprego e, existindo mecanismos capazes de gerar tais oportunidades de trabalho, devem ser regulados com o objetivo de cumprirem sua função social.”
Se, de um lado, não dá para ignorar que as relações de trabalho estão mudando bruscamente dado o aumento do desemprego e a possibilidade de manutenção de renda imediata através desses aplicativos, de outro lado, a proteção desses trabalhadores é fundamental.
Com efeito, apesar de a justiça manter um posicionamento consolidado quanto a não adoção do vínculo empregatício em divórcio aos interesses dos entregadores e motoristas de aplicativos, vimos com bons olhos as recentes manifestações de rua como expressão da organização dessa classe que se mobiliza em favor da manutenção dos direitos sociais que historicamente foram conquistados por trabalhadores.
Monique Rodrigues do Prado
Advogada, integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco.
https://monitormercantil.com.br/a-uberizacao-do-trabalho-e-a-resistencia-dos-trabalhadores