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24/02/2021
Entre o direito de amamentar e o direito de estudar: tirando a força do útero
24 de fevereiro de 2021
“Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos”.
Por Fabiola Sucasas Negrão Covas*
O termo “maternal wall” (parede ou muro materno) foi desenvolvido nos Estados Unidos para explicar padrões de discriminação dirigidos às mulheres no ambiente de trabalho na sua interseccionalidade com a maternidade e as respectivas respostas de tratamento (WIILIAMS, Joan C. The Maternall Wall., 2004) A condição de mães das mulheres trabalhadoras há muito desperta questionamentos sobre a dimensão do direito à igualdade e a necessidade da adoção de ações de caráter afirmativo com o propósito de corrigir injustiças e impor equilíbrio à garantia deste direito, não sendo incomum experiências preconceituosas neste espaço, nas interações com empregadores e colegas de trabalho, dentre outros, que tenham relação com a gravidez e o exercício da maternidade.
Problematiza-se, no breve estudo produzido para a disciplina Direito e Equidade de Gênero da pós-graduação do Largo de São Francisco, o caráter pretensamente “assexuado” dos ambientes de trabalho em relação ao exercício do direito à amamentação, em especial no âmbito da preparação para a docência, recorte realizado.
A mais atual regra que permitiu que candidatas lactantes compensem o tempo de amamentação em até 20% do tempo de duração de cada prova no processo seletivo para ingresso no programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para o ano letivo de 2021, é um dos exemplos. De fato, ela não está isolada do debate e da tendência nacional, uma vez que trazida em meio a recomendações, decisões judiciais, legislações e iniciativas de caráter administrativo que já discutiam o tema e que se preocupavam em garantir o direito à igualdade em um processo público de concorrência. Também não está, a nova regra, afastada de uma conjuntura de debates dos estudos de gênero, dos meandros das discussões relacionadas a violência contra a mulher e da adoção de ações afirmativas, porém não se deixa de trazer a crítica de que sua abrangência apresenta-se tímida quando se colocam à prova as circunstâncias histórico-culturais que permeiam a amamentação.
Neste sentido, não há como ignorar a compreensão de que a regra não se insere em um compêndio de oportunidades nos quais as mulheres encontram caminhos livres de obstáculos no âmbito da carreira acadêmica, aos saberes e à produção de conhecimento. Questiona-se inclusive a participação de suas vozes na construção da norma e os esforços voltados à sua efetividade a partir das necessidades concretas e amplas para o seu exercício.
Ainda que, antes dos novos regramentos incluídos nos editais, as candidatas que amamentavam só ocupassem o espaço das provas quando sua escolha girava entre deixar o bebê em casa – e assim carregar a “culpa” por esta “escolha” dentro de uma construção romântica da maternidade – , ou adiar seus planos de carreira, sob a alcunha do “portal fantasioso”, neles recaiu a crítica de um fim em si mesmo.
Parentalidade Revolucionária
A partir do lugar de fala de candidata beneficiada com norma semelhante em outro processo seletivo, de fato evidenciou-se a importância da nova regra em seu caráter afirmativo de gênero porquanto lhe permitiu realizar o concurso, todavia não se ignoram as tensões que permearam a sua vivência a ponto de retratá-la como um exercício que tenha demandado “tirar a força do útero”, ou seja, uma vivência que exigiu esforços extraordinários, e o que não retira a necessidade de mergulhar com mais profundidade em suas nuances e permitir o seu aprimoramento, seja de qual âmbito for.
Da mesma forma, questiona-se a efetividade de sua aplicação quando se verifica a imposição de limitação de tempo máximo conferido pelo edital à compensação do tempo de amamentação com o da prova, o que possivelmente exclui a situação de bebês que são amamentados por mamadeiras, ou mesmo quando se observa o receio da inexistência de condições estruturais para esta finalidade, como por exemplo a reserva de sala de ordenha apropriada.
Neste sentido, não se pôde concluir que o liame existente entre a regra das candidatas lactantes – termo colocado em xeque – com a maternidade, carreira acadêmica e os percalços generificados em que tais condições estão implicadas, mesmo que capazes de serem problematizados a partir dos editais estudados, tenha se apresentado de forma correlacionada e impulsionadora de uma adoção clara de política de igualdade de gênero da universidade.
Por outro lado, sem embargo das ponderações apresentadas, comemora-se a tendência em se cavar o debate a partir da discussão como a ora travada, inclusive no que diz respeito a percepção de que a nova norma tem o potencial de beneficiar, em maior número, mulheres de baixa renda – são as que tem maior taxa de fecundidade – e, segundo os dados trazidos, as mulheres negras.
É preciso reforçar a ideia de que o exercício da maternidade não pode se constituir, em hipótese alguma, motivo de exclusão para as mulheres sob pena de violação aos seus direitos humanos, e o de que, nas palavras de HOOKS, o exercício da “parentalidade revolucionária” possa ser de fato uma realidade e um caminho para mudança concreta deste cenário.
*Fabiola Sucasas Negrão Covas é promotora de justiça e membro auxiliar da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público