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12/09/2022Migalhas| Transmissão do conhecimento e ensino jurídico
Pierre Moreau
quinta-feira, 8 de setembro de 2022
Atualizado às 08:48
Este espaço já foi utilizado por mim para apontar que o acesso à informação é essencial para o mundo contemporâneo e que “a transparência deve ser alimentada e valorizada, aperfeiçoando-se constantemente seus padrões e métricas”, especialmente o âmbito do mercado de capitais (Migalhas do Saber, “Conhecimento é poder”, 03/12/2020).
Mas não é só na atividade empresarial que a informação tem papel relevante, pois transmissão do conhecimento se revela como uma função intrínseca nas carreiras jurídicas, especialmente na advocacia, em que a experiência adquirida por um profissional não pode servir de aprendizado para outro senão a partir da visão da própria pessoa que a vivenciou.
Recentemente, tive o prazer de ler o livro “Newton”, de Luís Francisco Carvalho Filho (Editora Fósforo), em que o advogado criminalista relata contos e crônicas que retratam sua experiência perante os tribunais pátrios. Aliás, o formato já havia sido utilizado pelo autor em seu “Nada mais foi dito nem perguntado”, de 2001 (Editora 34).
Com um estilo de escrita preciso e sem rodeios, o autor auspiciosamente ensina aquilo de que de mais valioso se pode aprender no patrocínio de tantos casos de repercussão: que não existe apenas um jeito de fazer a coisa certa, e que boas doses de criatividade e de experiência são essenciais para o sucesso perante os tribunais.
Esse estilo narrativo é muito agradável de ser lido e, na sua essência, revela um método bem-sucedido de apresentar episódios vividos pelo autor, ou por ele criados intencionalmente, com o objetivo de enriquecer os conhecimentos do leitor.
Com similares características, tive oportunidade de organizar a obra “As Letras da Lei: contos” (Casa da Palavra, 2013), que traz capítulos assinados por personalidades do nosso meio, cuja pena apresenta agradáveis contos que também veiculam conhecimento em forma de prosa.
Não é por acaso que grandes nomes da humanidade se valem da mesma técnica, desde os maiores nomes da filosofia grega, passando pelos grandes mestres das principais religiões do planeta, chegando aos famosos “casos práticos” do ensino jurídico moderno.
Mais do que um mundo à parte, como é comum se ouvir popularmente, a realidade jurídica apresenta uma cultura própria, peculiar e às vezes até mesmo estranha para os não-iniciados nessa arte.
Contudo, a verdade é que o hábito de lidar com a vida alheia requer técnicas próprias para “comparar o incomparável”, criando formas de abstrair e permitir dar aos iguais o mesmo tratamento, e distinguir os desiguais na exata medida das suas desigualdades, para tornar realidade concreta as garantias magnas que exprimem, por exemplo, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, e que conceitos tão diversos como a “inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” deverão ser assegurados simultaneamente e em sua maior medida possível.
Garantias similares constaram de todas as constituições federais:
– Constituição de 1891 (art. 72, §2º): “Todos são iguais perante a lei. A República não admite privilégios de nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.”
– Constituição de 1934 (art. 113, §1º): “Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distinções, por motivo, de nascimento, sexo, raça, profissões ou do país, classe social, riqueza, crença religiosas ou idéias políticas.”
– Constituição de 1937 (art. 122, §1º): “Todos são iguais perante a lei.”
– Constituição de 1946 (art. 141, §1º): “Todos são iguais perante a lei.”
– Constituição de 1967 (art. 150, §1º): “Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.”
– Emenda Constitucional n.º 1, de 1969 (art. 153, §1º): “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo, religiosos e convicções políticas. Será punido pela lei o preconceito de raça.”
– Constituição de 1988 (art. 5º, caput): “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […].”
Uma cultura jurídica que se utiliza de abstrações jurídicas, conceitos indeterminados e cláusulas gerais etc., precisa de narrativas que apontem casos em que situações distintas devem ser consideradas como idênticas, para determinada finalidade legal, e casos em que as distinções merecem ser mantidas, por exemplo, como ocorre no âmbito dos estatutos que protegem as crianças e os adolescentes; os estrangeiros; os idosos; os índios, silvícolas e comunidades indígenas; os jovens; as microempresas e empresas de pequeno porte; as pessoas com câncer; as pessoas com deficiência; a população negra; os refugiados; os torcedores etc., muitos dos quais fundamentados exatamente na garantia do respeito à igualdade, dignidade, cidadania e inclusão social de tais grupos de pessoas físicas e jurídicas.
É evidente que as pessoas não são iguais, e a proteção da individualidade de cada um é também uma forma de expressão do princípio da igualdade e da isonomia. Mas as desigualdades não podem servir de fundamento para qualquer forma de discriminação, diminuição da identidade, redução de direitos, distinção ilícita etc., sendo próprio do Direito assegurar que situações indesejadas sejam evitadas ou, quando o cumprimento da lei chegar tarde ao sujeito, ao menos a sua justa reparação material e moral, com a punição do ofensor.
E é aí que a cultura jurídica se beneficia grandemente da técnica de transmitir conhecimento por meio de contos, crônicas, “casos”, pois algo se torna factível realizar algo tão difícil como conceituar padrões aceitáveis de distinção, que não configurem ilícita discriminação.
Em razão dos apontamentos acima, deixo aqui o meu pedido para que mais obras desse tipo sejam publicadas, como forma de fomentar o crescimento da cultura jurídica e se valer de técnicas que ressoam tão bem com o público ávido por mais conhecimento, crítico e de boa qualidade.
***
*Agradecimento especial ao advogado Renato Xavier da Silveira Rosa, que colaborou com o artigo.
Para quem se interessar mais sobre o assunto:
– Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, São Paulo, Atlas.
– José Afonso da Silva. Curso de direito constitucional positivo, São Paulo, Malheiros, e Aplicabilidade das normas constitucionais, São Paulo, Malheiros.
– Luís Francisco Carvalho Filho, Newton, Editora Fósforo, e “Nada mais foi dito nem perguntado”, Editora 34, 2001.
– Nelson Nery Júnior, Princípios do processo civil à luz da Constituição Federal, São Paulo, Revista dos Tribunais.
– Pierre Moreau (org.), As letras da lei: contos, Casa da Palavra, 2013, e “Conhecimento é poder”, Migalha do Saber, 03/12/2020.