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Por Leonardo Jubilut*
29/03/2023 | 06h30
Em meio a tantas boas notícias do festival Lollapalooza, uma chamou a atenção negativamente. Fiscalização do Ministério de Trabalho encontrou trabalhadores em situação análoga à escravidão.
O fato causou perplexidade, já que num curto espaço de tempo tivemos operações do Ministério do Trabalho em outros estados que constaram diversos cidadãos em condições de trabalho degradantes qualificadas como análoga à escravidão.
Entretanto, ao se analisar a grave situação descrita no festival de música, por uma questão de definição legal, esta não pode ser confundida com a de trabalho análogo a escravidão.
Se de um lado temos na erradicação do trabalho em condições degradantes um dos pilares do estado democrático de direito, noutro temos que a conclusão deste tipo de situação deve ser amplamente estudada, antes de divulgada.
Enquanto Nação soberana, o Brasil se comprometeu a combater o trabalho escravo mediante a assinatura de diversos instrumentos do direito internacional, a saber: Convenção n° 29 sobre o Trabalho Forçado ou Obrigatório (1930) da Organização Internacional do Trabalho (OIT); Convenção n° 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1957) da OIT; Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas de 1966 que proíbe, no seu artigo 8º, todas as formas de escravidão; Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas de 1966, que garante, no seu artigo 7º, o direito de todos a condições de trabalho equitativas e satisfatórias; Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969, no qual os signatários firmaram um compromisso de repressão à servidão e à escravidão em todas as suas formas.
No âmbito de legislações internas, nossa Carta Magna destina ao menos cinco artigos que tratam do tema. Para se confirmar a importância, já em seu artigo 1º, nosso Estatuto Maior impõe ser fundamento pilar do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.
É a partir do desenvolvimento destes conceitos na sociedade que se inspiram práticas corporativas institucionais como as de cuidados com Ambiente, relações sociais e governança, conhecidas pela sigla em inglês ESF; e da transformação da checagem regular das condições de trabalho numa empresa para avaliações completas de obediência a todas as conformidades das normas, conhecido como compliance trabalhista.
Assim, dentro deste contexto, a classificação de uma situação apurada por fiscais do trabalho deve ser precedida de cuidadosa análise. Seja para se evitar banalização de conceito, como também para se evitar mal irreversível aos envolvidos.
Precisa-se então entender qual o limite de uma mera irregularidade trabalhista, ainda que grave, e a caracterização do trabalho análogo a escravidão.
O Artigo 149 do Código Penal Brasileiro conceitua que o trabalho análogo ao de escravo é caracterizado pela submissão de alguém a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Sem dúvidas de que o estereotipo que surge no imaginário da maioria das pessoas no qual o trabalho escravo somente se apresenta em situações de trabalhador acorrentado, açoitado ou ameaçado, está absolutamente afastado.
Noutro tanto, também é certo que a redução do trabalhador à condição análoga à escravidão exige alguns pressupostos mínimos que são constrangimento físico e/ou moral, péssimas condições de trabalho, alojamentos sem condições de habitação, ausência de instalações sanitárias e de água potável, falta de fornecimento gratuito de equipamentos de proteção individual e de boas condições de saúde, higiene e segurança de trabalho.
Desta forma, diante do conceito jurídico trazido pelo ordenamento pátrio, para fins de se caracterizar o trabalho análogo ao de escravo, há que se haver elementos concretos, que devem estar presentes de forma concomitante.
O primeiro deles é o trabalho forçado. Após vem as condições degradantes da atividade e, por fim, a restrição de locomoção. Trocando em miúdos, haverá o trabalho análogo à escravidão, aquela situação extrema, em que o empregado é mantido preso, sem possibilidade de ir e vir, vigiado, em condições absolutamente sub-humanas, sem qualquer higiene, em local inadequado de trabalho e de convivência e forçado a trabalhar em jornadas absolutamente exaustivas.
Embora, infelizmente, tais casos não tenham sido raros, não há se confundir, absolutamente, com a situação descrita no festival de música Lollapalooza.
De acordo com relatos da imprensa, a fiscalização encontrou cinco trabalhadores “em condições análogas à escravidão”. Cita-se, ainda à luz da reportagem, que tais trabalhadores se aviavam como carregadores de bebidas, em jornadas de 12 horas, sem remuneração de horas extras e sem o descanso semanal adequado previsto em lei. Além disto, tinham o valor do exame médico admissional descontado de seu salário e não recebiam vale-transporte.
Por mais que tais irregularidades possam ser entendidas como graves, em nenhum momento podem ensejar a qualificação do crime tipificado no artigo 149 do Código Penal. Afinal, os trabalhadores foram registrados. Se registrados, minimamente, já tinham seus direitos trabalhistas primários garantidos. Labutaram no festival, situação atípica, que durou por parcos três dias. Se houve irregularidades na contratação, jornada ou inobservância de alguns direitos, a empresa deve ser autuada e punida, nos termos e, sobretudo, limites da lei.
Mas, será que esta situação se enquadra na situação extrema do artigo 149 do CP, ou no famigerado e reprovável trabalho análogo a escravidão? A resposta para esta pergunta é não.
Se existe a incansável busca na erradicação deste mal, também há um receio da comunidade jurídica de que toda e qualquer irregularidade trabalhista constatada, venha a ser vinculada com o trabalho análogo à escravidão.
Tal e qual já houve em tempos não tão remotos, a banalização dos operadores do direito de importantes institutos, como dano moral e, principalmente, assédio moral, não se pode permitir que a classificação de trabalho análogo à escravidão sofra também o incorreto e injusto uso e acabe por ser banalizado.
O trabalho escravo é crime e representa grave violação aos direitos humanos, ainda presente em diversas regiões do mundo e em todos os tipos de economia.
Soa, entretanto, incompatível, a situação de empregado registrado, labutando em um evento de três dias de duração, com direitos primários atendidos com a condição de trabalho análogo a escravidão, tipificada como crime em nosso Código Penal.
A notícia veiculada traz ainda, como um dos fatores que levaram a autuação da empresa, o “desconto irregular em salário”, além de uma jornada de 12 horas.
Desconto irregular ou indevido, acontece a rodo nas corporações, sem que isto posso, nem de longe, ensejar uma qualificação, tal e qual feito na reportagem. Ao depois, a jornada de 12 horas, em si, jamais pode ser tida como supedâneo a esta grave classificação. Não há de se olvidar que diversas categorias laboram 12 horas diárias, sem que isto represente, sequer, prestação de horas extras.
Sem sombra de dúvidas que, havendo irregularidades, os órgãos competentes haverão de agir, autuar e caso for, punir, contudo, há se ter muito cuidado ao se classificar a situação como crime tipificado e altamente grave, de trabalho análogo à escravidão
*Leonardo Jubilut, advogado especialista em direito do trabalho, sócio de Jubilut Advogados