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12/06/202331 de maio de 2023
Enquanto governo e parte do Judiciário pressionam por regulação das mídias sociais, Big Techs do Vale do Silício e bancadas temáticas tentam manter cenário atual.
Em meio aos dilemas sobre os próximos passos da Inteligência Artificial (IA), o Vale do Silício passou os últimos tempos com os olhos voltados para o Brasil.
Não é para menos: um dos maiores mercados globais para seus produtos — hoje, cerca de 159 milhões de brasileiros são ativos em alguma rede social — passa, desde abril, por um debate sobre como regular o que pode e o que não pode ser dito, compartilhado e até mesmo gerar lucro em plataformas como Facebook, Twitter e Instagram.
A discussão, na verdade, vai além das Big Techsnorte-americanas. Envolve também gigantes globais como a chinesa TikTok, usada por 82 milhões de pessoas no País, e o russo Telegram — que se vê às voltas com as autoridades brasileiras pelo menos desde as eleições do ano passado. No centro desse debate, o Projeto de Lei (PL) 2.630, proposto há três anos pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania/SE) e que, depois de tramitar lentamente entre as casas legislativas, quase foi levado ao plenário da Câmara dos Deputados no começo de maio para votação definitiva. De 2020 para cá, o texto foi remendado mais de 150 vezes.
Na verdade, o regramento das mídias sociais no Brasil já havia entrado na agenda do Executivo em janeiro, quando o Palácio do Planalto e o edifício do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília, foram invadidos e vandalizados por milhares de manifestantes que acampavam desde outubro em frente a quartéis do Exército. No entanto, o tema só alçou relevância pública, de fato, quando publicações em redes como o TikTok e o Twitter com conteúdo de ódio a grupos específicos, além de ameaças de ataques a escolas, deixaram de passar despercebidas por usuários e autoridades.
“O STF tem dito que, em situações envolvendo o dilema da liberdade de expressão, vale analisar caso a caso. Isso gera desmandos, porque os juízes ficam livres para dizer o que é liberdade de expressão e o que é ofensa à honra, por exemplo. É preciso uma diretriz mais concreta. É melhor saber o que não podemos do que não saber nada.”
Carlos Eduardo Ferreira de Souza Grupo Pesquisa sobre Liberdade de Expressão no Brasil Núcleo de Estudos Constitucionais da PUC-Rio
No contexto da votação do projeto na Câmara, em maio, o jogo de forças entre a oposição — formada principalmente pela bancada evangélica, pelas Big Techs e por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro — e os adeptos da proposta foi tão intenso que, de última hora, o texto foi retirado da pauta do plenário. O deputado Orlando Silva (PcdoB/SP), relator do texto, disse, na ocasião, que recebeu tantas sugestões de novas emendas que os parlamentares já não sabiam mais sobre o que estavam decidindo. A perspectiva é que o PL das Fake News, como ficou conhecido, volte ao plenário no fim deste semestre. Mas, afinal, o que está em jogo no projeto?
REGULAÇÃO
Se há um consenso sobre o PL é o fato de o escopo atual ser tão diferente da primeira proposta apresentada que, ao fim, muitos pontos relevantes passaram meses sem sequer serem discutidos. Esse foi, inclusive, um dos motivos para o adiamento da votação na Câmara.
Para além dos dilemas institucionais, os apoiadores veem nele a medida mais concreta elaborada até agora para combater a circulação de mensagens de ódio e violência contra grupos sociais, como negros, mulheres e pessoas LGBTQIAP+. Outro aspecto de enfrentamento é o fenômeno da desinformação — crítica que tem sido feita no Brasil, pelo menos, desde as eleições de 2018.
Críticos olham com desconfiança, principalmente, para a possibilidade de sanções às plataformas que não se adaptarem às novas regras. Este é o temor que envolve as próprias Big Techs: elas não apenas se posicionaram contra a medida como endossaram a perspectiva, já em circulação, de que a lei representaria uma forma de censura. Um dos pontos mais atacados está no artigo do PL que estabelece multas por infrações — em alguns casos, elas chegam a 10% do faturamento da empresa no País.
O pesquisador Carlos Eduardo Ferreira de Souza, do Grupo Pesquisa sobre Liberdade de Expressão no Brasil, vinculado ao Núcleo de Estudos Constitucionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), defende que as redes sociais sejam reguladas, mas não do jeito que o projeto pretende. “As coisas foram acontecendo com pressa e, pior do que isso, foram sendo jogadas para alimentar a polarização social do País. Quem apoia o governo é favorável ao PL. Quem é contra, automaticamente, o rejeita”, lamenta.
Para ele, os principais problemas do texto passam pela ausência de uma instância administrativa responsável por fiscalizar e aplicar as sanções nos moldes da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), no caso da Lei Geral de Proteção de Dados (LGDP), pelo desenho desequilibrado de remuneração dos produtores de conteúdo jornalístico dentro das redes e pela falta de uma definição mais clara sobre o próprio conceito de liberdade de expressão.
“O STF tem dito que, em situações envolvendo esse dilema, vale analisar caso a caso. Isso gera desmandos, porque os juízes ficam livres para dizer o que é liberdade de expressão e o que é ofensa à honra, por exemplo. É preciso uma diretriz mais concreta”, explica. “É melhor saber o que não podemos do que não saber nada”, continua Souza.
No aspecto econômico, o PL estabelecia originalmente que as plataformas repassassem parte dos lucros obtidos com conteúdos jornalísticos produzidos por veículos de imprensa e disponibilizados na rede. A regra, no entanto, dependeria de alguns requisitos, como tempo de existência do veículo e uma comprovação de regularidade das postagens. Nas últimas semanas, porém, Orlando Silva resolveu retirar esse trecho como parte da negociação que costurou com as bancadas da Câmara. “Uma das grandes vantagens das redes sociais é justamente a independência dos produtores de conteúdo. Do jeito que está, apenas os grandes veículos serão valorizados, deixando de fora uma série de bons canais independentes ou que estejam no ar há menos tempo.”
Souza, PUC-Rio, considera um equívoco deixar as plataformas de fora da discussão. O Google, principal buscador da internet, deixou a frase “O PL das Fake News pode aumentar a confusão sobre o que é verdade ou mentira no Brasil” no ar no seu serviço brasileiro até ser notificado pelo Ministério da Justiça, no começo de maio. Quando os usuários clicavam nela, acessavam o link de um artigo do diretor de Relações Governamentais e Políticas Públicas da companhia no País, Marcelo Lacerda, criticando o projeto.
Já a Meta, empresa que administra o Facebook, o WhatsApp e o Instagram, divulgou uma nota ameaçando até mesmo interromper os serviços gratuitos oferecidos por ela no mercado brasileiro. “Sem a participação das Big Techs,não há caminho para a regulação. Contar com elas foi fundamental para a administração das eleições do ano passado por parte do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo — inclusive com as dificuldades envolvendo o Telegram”, analisa. O pesquisador da PUC-Rio opina que, embora pressionem por manter um ambiente desregulado tanto no Brasil quanto em outros países, as empresas de tecnologia estão dispostas a debater algum tipo de regulação. “Nem elas mesmas acreditam que vão existir em um cenário sem nenhum tipo de regra. Até porque, no limite, isso também é uma segurança maior para elas.”
LIBERDADE CONFUNDIDA
Maria Cecília Oliveira Gomes, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), tem uma visão diferente. Para ela, o PL 2.630 é a medida mais efetiva que o Brasil produziu até agora para lidar com os desafios contemporâneos que se refletem nas redes sociais, como a própria confusão conceitual em torno da liberdade de expressão e a proliferação de conteúdos discriminatórios.
Ao gerenciar milhões de postagens diferentes todos os dias, as plataformas têm o dever de moderar o que é publicado para evitar que mensagens de ódio ou que desinformem os usuários circulem livremente, na visão de Maria Cecília.
Mais do que um direito de se expressarem, essas práticas são infrações previstas na Constituição. Nesse sentido, o projeto ataca o problema diretamente. “Ao contrário de quem diz que se trata de censura, o projeto tem como base um dever de cuidado. Se uma pessoa faz uma postagem racista no Twitter, por exemplo, a plataforma precisa ser obrigada a tirá-la do ar, na medida em que fere não apenas os próprios termos de uso, como também é um crime previsto na lei do País”, argumenta. “A minha liberdade de expressão não pode violar a esfera íntima de ninguém”, continua.
O embate, para a pesquisadora da USP, está na ordem econômica: as Big Techslutam contra o projeto porque, caso este seja aprovado, elas precisariam investir imediatamente em uma série de mecanismos de moderação dos conteúdos — desde bots que excluiriam automaticamente mensagens violentas até equipes que ficariam responsáveis por avaliar conteúdos mais sensíveis à percepção das máquinas.
“O projeto tem como base um dever de cuidado. Se uma pessoa faz uma postagem racista no Twitter, por exemplo, a plataforma precisa ser obrigada a tirá-la do ar, na medida em que fere não apenas os próprios termos de uso, como também é um crime previsto na lei do País. A minha liberdade de expressão não pode violar a esfera íntima de ninguém.”
Maria Cecília Oliveira Gomes Universidade de São Paulo
Essa responsabilização também teria impacto no Judiciário, que deixaria de receber (e precisar resolver) casos de comentários criminosos publicados nas redes sociais. Ao contrário, no cenário regulado, as próprias empresas tomariam para si a resolução dos casos, ainda que fiscalizadas pelo Poder Público. “É o que chamamos de autorregulação regulada: as redes assumem a moderação do conteúdo, removem postagens que violam os próprios termos e prestam contas dessa atividade para as autoridades”, explica Maria Cecília, citando, por exemplo, a obrigatoriedade de apresentar relatórios de transparência para o governo. “Ali precisariam estar os protocolos de segurança, os filtros tecnológicos, o trabalho das equipes de moderação, o volume de comentários criminosos que foram retirados do ar etc. Essa colaboração é um acerto do texto.”
Maria Cecília também enxerga de outra forma a presença das Big Techs no debate em torno do projeto: na verdade, elas estão participando ativamente do escopo regulatório. “Os representantes das empresas estão em agendas com os deputados toda hora. O próprio relator, Orlando Silva, dialogou com elas, assim como fez com todos os partidos no Congresso.”
Há, no entanto, concordâncias sobre alguns pontos. A principal delas é a incerteza sobre a entidade que ficará a cargo da gestão e fiscalização das plataformas. Se o projeto for aprovado, essa é uma das decisões que deverão ser tomadas no curto prazo. Algumas indefinições conceituais causam problema à proposta, na opinião de Maria Cecília: “O desafio é ter clareza do que é desinformação. Já foram apensados oito projetos ao texto principal tentando resolvê-lo, mas nenhum teve sucesso. Esse debate teórico está em aberto e, no limite, deveria sair da esfera do PL e ser feito em outro lugar”, finaliza.
Esse jogo de forças tem previsão de retornar a campo no fim de junho, quando a Câmara voltará a se reunir para debater o projeto. Se aprovado, o Brasil vai se juntar a poucos países que já passaram por processos semelhantes, como os Estados Unidos — que se valeram de regras estabelecidas desde os anos 1990 para o uso da internet —, a França e a Coreia do Sul, esta última geralmente citada como o exemplo mais acabado de um plano regulatório. Até lá, o dilema das redes no Brasil não deve perder temperatura.