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09/03/2023Por Rafael Simão de Oliveira Cardoso e Vitor Veríssimo Borges
Os contribuintes brasileiros não estão tendo um começo de 2023 fácil, notadamente aqueles que cumprem com suas obrigações principais e acessórias e, em caso de dúvidas decorrentes do intrincado sistema legislativo tributário do país, se socorrem do contencioso para dirimir tais conflitos.
Assistimos logo no começo do ano a queda do importante instituto do voto de qualidade no Carf: se o princípio do in dubio pro reo vale para o sistema penal, o mesmo não se aplica para o contencioso administrativo tributário federal.
A mais recente perplexidade jurídico-tributária com a qual os contribuintes se deparam diz respeito à “relativização” da coisa julgada em matéria tributária. Dessa vez, a surpresa veio da mais alta Corte Judicial do país, por meio do julgamento em repercussão geral dos temas 881 e 885, no qual o STF decidiu pela cessação automática dos efeitos da coisa julgada em matéria tributária de decisões que vão de encontro a novel entendimento da Corte Suprema.
Na ocasião, duas teses foram definidas:
1) As decisões do STF em controle incidental de constitucionalidade, anteriores à instituição do regime de repercussão geral, não impactam automaticamente a coisa julgada que se tenha formado, mesmo nas relações jurídicas tributárias de trato sucessivo.
2) Já as decisões proferidas em ação direta ou em sede de repercussão geral interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações, respeitadas a irretroatividade, a anterioridade anual e a noventena ou a anterioridade nonagesimal, conforme a natureza do tributo.
O julgamento ocorreu no último dia 08 de fevereiro e impactou significativamente o mercado. Empresas como o Grupo Pão de Açúcar já divulgaram fato relevante ao mercado estimando qual seria o impacto da decisão em razão de decisões prévias envolvendo a discussão da CSLL.
Mas será que essa suposta “surpresa” tem mesmo razão de ser? Muito embora todo o alarde que tem sido feito desde o último dia 08/02, o posicionamento agora consagrado pelo STF não parece ser inédito, nem mesmo destoa da corrente doutrinária majoritária. Teori Zavascki, por exemplo, pregava que os efeitos das decisões com conteúdo prospectivo perduram enquanto mantidos o suporte fático e a realidade normativa, ou seja, todas essas sentenças, ainda que transitadas em julgado, contém, implicitamente, a cláusula rebus sic stantibus.
Em suas palavras, “a sentença tem eficácia enquanto se mantiverem inalterados o direito e o suporte fático sobre os quais estabeleceu o juízo de certeza (…) se [ela] afirmou que determinada relação jurídica não existe, supôs a inexistência, ou do comando normativo, ou da situação de fato afirmada pelo litigante interessado (…) alterada a situação de fato (muda o suporte fático, mantendo-se o estado da norma) ou do direito (muda o estado da norma, mantendo-se o estado de fato), ou os dois, a sentença deixa de ter a força de lei entre as partes, que até então mantinha”. (Zavascki, 2013, p. 105).
Nessa linha, o STF, no julgamento do RE nº 599.764/GO, perfilhou o entendimento de que essa alteração do status quo tem, em regra, efeitos imediatos e automáticos, cessando, a partir daí, a eficácia vinculativa do julgado, independentemente de novo pronunciamento judicial ou de qualquer outra formalidade, o que se assemelha demasiadamente às teses recentemente aprovadas pela Corte.
Não só, a própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, através do Parecer nº 492/2011, diz que, sobrevindo decisão de Tribunais Superiores com efeitos erga omnes, “a cessação da eficácia vinculante da decisão tributária transitada em julgado opera-se automaticamente, de modo que: 1) quando se der a favor do Fisco, este pode voltar a cobrar o tributo, tido por inconstitucional na anterior decisão, em relação aos fatos geradores praticados dali para frente, sem que necessite de prévia autorização judicial nesse sentido; 2) quando se der a favor do contribuinte-autor, este pode deixar de recolher o tributo, tido por constitucional na decisão anterior, em relação aos fatos geradores praticados dali para frente, sem que necessite de prévia autorização judicial nesse sentido”.
Ainda assim, em razão da falta de publicação do acórdão, ocasião na qual teremos a exata dimensão do impacto do julgado, muitas perguntas estão no ar, principalmente aquelas acerca da extensão do julgamento, ou seja, se a decisão é aplicável apenas para o futuro ou se este entendimento tem efeitos pretéritos no sentido de constituir verdadeiros passivos tributários.
No nosso entender, no que tange aos objetos desses processos que originaram os temas 881 e 885, não estaria em discussão a 1) mutabilidade da coisa julgada tributária, mas tão somente a limitação dos seus efeitos temporais. Em outras palavras, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal no precedente referido acima e no julgamento dos Temas 881 e 885, por exemplo, não tem o condão de fazer alterar o conteúdo de decisões transitadas em julgado, apenas impedem a produção dos efeitos dali para frente, preservando-se os efeitos produzidos anteriormente.
Em resumo: há que necessariamente se diferenciar a aptidão da decisão transitada em julgado para produzir efeitos da sua efetiva imutabilidade quanto ao passado na qual produziu efeitos.
Nesse sentido, por pior que possa parecer o cenário — e o cenário de fato é ruim para empresas que tenham decisões transitadas em julgado em controle difuso na contramão de entendimento posterior do STF — os temas 881 e 885 têm impacto apenas sobre os efeitos pro futuro das decisões transitadas em julgado.
Desse modo, quando a Corte diz que suas decisões, sejam elas oriundas do controle difuso de constitucionalidade, sejam elas oriundas do controle concentrado de constitucionalidade, “interrompem automaticamente os efeitos temporais das decisões transitadas em julgado nas referidas relações”, nada mais faz do que referendar a sua própria jurisprudência.
Especificamente em relação à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, o STF, ainda em 2007, por meio da ADI nº 15/DF, reconheceu a sua constitucionalidade, enquanto diversos contribuintes já tinham, à época, decisões judiciais transitadas em julgado. Como compatibilizar o precedente do STF com a coisa julgada em sentido contrário nesse caso, se é que é possível? Entendemos que, pelo fato de constar na tese aprovada a necessidade de observância à irretroatividade e, na ausência de modulação dos efeitos da decisão, o Fisco não tem autorização para pleitear a cobrança do que o contribuinte deixou de pagar desde o trânsito em julgado favorável a ele. Não se cogita, portanto, de passivo tributário, já que não há retroatividade, tampouco modulou-se os efeitos com vistas ao passado
Ocorrerá “somente” a cessação da eficácia da coisa julgada em razão de não mais perdurar o estado de Direito decorrente do novo posicionamento do STF! Nesse sentido, o STF privilegia e dá uma força ainda maior ao controle concentrado em detrimento do controle difuso (não afetado pela repercussão geral) em prol de uma suposta isonomia entre todos os contribuintes.
Segundo tal entendimento, o STF estaria garantido a igualdade de condições para todos os contribuintes à medida que todos passarão adotar a mesma regra a partir do julgamento em controle concentrado ou em controle difuso com repercussão geral, independentemente de decisões individuais transitadas em sentido diametralmente oposto.
Pela simples leitura das teses acima colacionadas, portanto, não haveria que se falar em mutabilidade automática da decisão transitada em julgada durante o tempo pelo qual esta perpetrou seus efeitos no mundo jurídico.
Dessa forma, de acordo com o que prescreve a própria tese firmada pelo STF, e em prol do princípio da irretroatividade, a mudança de entendimento do STF não teria o condão de alcançar e constituir passivos tributários decorrentes do não recolhimento de tributos ocorridos no período em que a decisão em concreto do contribuinte vigorou.
O efeito, então, só seria prospectivo e valeria da decisão do STF para frente, respeitados da mesma forma, os princípios da anterioridade anual e nonagesimal.
Noutro giro, é fato que pouco se fala no cabimento da ação rescisória, apenas ressaltam que, conforme a “novel” jurisprudência da Corte Suprema, é despicienda para efeito de cessação da eficácia temporal da coisa julgada, desde que se trate de ação julgada pelo controle difuso de constitucionalidade posteriormente à instituição da repercussão ou pelo controle concentrado de constitucionalidade.
Ressalva feita às ações oriundas do controle difuso de constitucionalidade anteriores à instituição do regime da repercussão, que, por terem eficácia inter partes, não extrapolam seus efeitos. Nesses casos, sem prejuízo das considerações tecidas abaixo, imprescindível a interposição de ação rescisória para cessar os efeitos da decisão transitada em julgado, já que ausente a cessação automática decorrente de pronunciamento contrário do STF.
Todavia, questiona-se se é cabível a ação rescisória — que, em regra, produz efeitos ex tunc — para desconstituir a decisão favorável ao contribuinte. Para tanto, deve-se ter em vista, sobretudo, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal erigida em torno da sua Súmula 343, cuja redação preceitua que “não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”.
No julgado da AR nº 1.415 (2015), a Corte salientou que “incide a Súmula 343 deste Tribunal, cuja aplicabilidade foi recentemente ratificada pelo Plenário deste Tribunal, inclusive quando a controvérsia de entendimentos se basear na aplicação de norma constitucional”. Dessa forma, caso a decisão passada em julgado tenha sido lastreada em dispositivo constitucional sobre o qual o próprio STF não tinha entendimento firme, incabível a rescisória, ainda que, posteriormente, enverede por um ou outro caminho.
E, quando do julgamento da AR nº 2.572 (2017), o ministro Gilmar Mendes pontuou que “é cabível ação rescisória fundada em violação à literal dispositivo de lei (artigo 485, V, antigo CPC), quando a decisão rescindenda tiver se baseado em interpretação constitucional frontalmente contrária à própria Constituição Federal ou em interpretação tida como incompatível pelo STF, ainda que seja pela posterior declaração de inconstitucionalidade superveniente da legislação que amparou o título executivo transitado em julgado”. E conclui dizendo que “não há como aplicar a Súmula 343 do STF aos casos em que o posicionamento do STF sempre decidiu no mesmo sentido”.
Na doutrina, Heleno Taveira Torres segue o mesmo raciocínio. Para o Professor, quando a “sentença executada estiver em confronto com precedente proferido após o seu trânsito em julgado, poderá ser rescindida por meio de ação rescisória, cujo prazo para a propositura — também de dois anos, conta-se a partir do trânsito em julgado não da decisão a ser rescindida, mas sim do precedente do STF que servirá de fundamento para a rescisão”.
Nessa esteira, embora o tema deixe dúvidas, o cabimento da ação rescisória na hipótese tratada neste artigo encontra amparo na jurisprudência do STF e na doutrina especializada. Legislativamente, os artigos 525, §§12º e 15º e 535, §§5º e 8º, do Código de Processo Civil seguem o mesmo destino, salientado, além disso, que o prazo para a sua interposição é de 2 anos contados a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal vide artigo 966 do CPC).
Outra dúvida bastante comum entre os contribuintes e sobre a qual também pouco se fala consiste na (im)possibilidade de operacionalizar compensações cujo direito esteja cristalizado na decisão favorável transitada em julgado.
A nosso ver — sem prejuízo da discussão acerca do cabimento da ação rescisória — as compensações realizadas no interregno entre o trânsito em julgado da decisão do contribuinte e a decisão desfavorável proferida pelo Supremo Tribunal Federal não se invalidam ante à cessação automática da eficácia. A eficácia dada à decisão transitada em julgado, porque anterior ao pronunciamento do STF e também por conta do princípio da anterioridade, não é atingida.
Por outro lado, uma vez que, a partir da decisão do STF contrária à decisão passada em julgado, cessa automaticamente a sua eficácia pro futuro, não há mais que se falar em exequibilidade. O direito à compensação, conquanto cristalizado na decisão favorável ao contribuinte e inalcançável pelo acórdão do Supremo Tribunal Federal, torna-se, dali em diante, estéril, incapaz de ser operacionalizado.
Feitas essas ponderações, aguardemos a publicação do acórdão para corroboramos, ou não, tais entendimentos preliminares ora expostos.
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Rafael Simão de Oliveira Cardoso é tributarista em Henares Advogados.
Vitor Veríssimo Borges é tributarista em Henares Advogados.
https://www.conjur.com.br/2023-fev-27/cardosoe-borges-limitacao-efeitos-temporais-coisa-julgada