Diário Indústria & Comércio| Atenas, Esparta e as escolas cívico-militares
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11/10/2024Publicado em 10/10/2024 às 06:00.
Percival Maricato*
O processo civilizatório evolui, mas com retrocessos em determinados períodos. É fato constatável ao longo da história. Muitos grupos sociais em meio a povos civilizados não querem pagar o preço dessa evolução, e então optam pelo retorno à barbárie, dominar os demais grupos ou até países inteiros e impor condições de vida mais bárbaras.
Fruto do desenvolvimento material, econômico e cultural, os gregos antigos, liderados por Atenas, reduziram a mitologia religiosa à ficção na explicação do mundo e deram origem ao período de racionalidade, criaram ou fortaleceram a ciência, as artes, o teatro, as escolas filosóficas, o mundo passou a ser outro, desenvolver-se sem recorrer à religião, houve um impulso notável ao processo civilizatório.Publicidade
Atenas foi fundamental nesse fenômeno, tornou-se a capital do mundo antigo. Os principais filósofos, cientistas, matemáticos, as descobertas, ou aconteceram na cidade de Péricles ou em suas colônias ao redor. Em Atenas nasceriam Sócrates, Platão, Aristóteles, grandes teatrólogos, escultores. Esse progresso em todas as áreas fez com que Atenas se tornasse, naturalmente, líder de um vasto império em sua volta.
Mesmo com o surgimento de Alexandre, do cristianismo, o advento do Império Romano, o processo de aculturação iniciado nessa cidade iria prosseguir no essencial também junto aos povos mais avançados da época.Publicidade
No século IV AC, Atenas despertava sentimentos de rivalidade de outras cidades vizinhas, entre elas Esparta, que se destacava pela preparação militar de seus moradores. Mesmo as crianças eram obrigadas a se preparar para guerras contra vizinhos.Esparta não produziu absolutamente nada em ciência, higiene, filosofia, geografia, criação de barcos, navegação, história, alimentação, monumentos, arquitetura etc., apenas guerreiros, gente disciplinada desde a infância. Toda atividade produtiva no campo era entregue aos escravos, chamados hilotas. E quando esses cresciam em população, os espartanos faziam grandes chacinas entre suas crianças, pois se sentiam ameaçados, temiam revoltas.
Os bolsonaristas, o governador Tarciso de Freitas de São Paulo inclusive, julgam esse modelo de Esparta o melhor para a educação dos cidadãos, é a ideologia aplicada à educação, ou talvez seja melhor, à doutrinação. E então preferem investir o dobro ou triplo de recursos em escolas ditas cívicos militares do que nas civis.
Poderiam ao menos também ensinar ou então reforçar o ensino de civismo nas escolas militares, o respeito à diversidade, ao outro, a pensamentos dissidentes, aos direitos humanos, à democracia. É o que se conclui pelo que anda acontecendo: prisão de um cidadão por ter uma faixa do PT no carro, ofensas a uma pessoa por reclamar de quase ter sido atropelado pela PM, prisão de uma professora por advertir filho de um coronel na escola, agressões constantes a advogados, intensa participação de militares em tentativas de golpe.
Essas escolas cívico militares vão mais longe que propostas da época da ditadura, quando os militares impuseram aos civis apenas uma matéria: aulas de moral e cívica.
No caso atual, em vez de se investir em escolas abertas, em processos pedagógicos, ensino integral, capacitação de professores, investe-se em aposentados da Política Militar. Estes terão poderes de intervir no funcionamento das unidades, ganhando muito mais que especialistas em educação. Numa época em que mais que nunca precisamos de pessoas abertas, criativas, capazes de ver o mundo em sua complexidade, de reforçar apelos à paz, tolerância, harmonia, em escolher opções corretas na evolução do processo civilizatório e mudar, se necessário. Sim, as escolas querem proteção policial, especialmente em bairros violentos, mas seria bem mais barato colocar policiais em locais e para suas funções específicas que em situação até superior à de professores.
O resultado obtido por Atenas séculos antes de Cristo – os estudiosos são unânimes – se deveram principalmente à democracia, à valorização da dúvida, no direito à divergência, do debate, da discussão inclusive sobre religião, opções políticas, desenvolvimento pessoal, à coragem de pensar diferente e promover mudanças.
A escola cívico militar ensina aos alunos serem mais fortes no civismo, na disciplina, a obedecer, ou seja, ao contrário da escola já civil. Esperemos que pelo menos os ensinem a respeitar os hilotas.
E pelo que anda acontecendo nas ruas, muito mais urgente é introduzir civismo nas escolas militares.
* Advogado, escritor, sócio do Maricato Advogados Associados, membro da Coordenação do PNBE – Empreendedores pelo país.