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27/02/2018Folha de São Paulo
Enquanto a maior parte do povo Maasai vive abaixo da linha de pobreza, grifes exploram seus nomes e suas imagens e faturam bilhões
Veiculado na Folha de São Paulo em 23.fev.2018
O povo Maasai, tribo africana de seminômades, luta contra a apropriação ilegal dos símbolos de sua cultura por grandes marcas do mercado de luxo.
A repercussão deste caso mostrado pelo jornal “Financial Times” é de grande escândalo por seus contrastes gritantes: enquanto a maior parte dos Maasai, que soma centenas de milhares de pessoas, vive em níveis abaixo da linha de pobreza, grifes internacionais exploram seus nomes, suas imagens e seus símbolos seculares em itens de vestuário e produtos, obtendo lucros que atingem a casa dos bilhões de dólares.
O diário britânico cita Louis Vuitton, Calvin Klein, Ralph Lauren, entre outros, como grupos que lançaram coleções recentes de roupas e acessórios com estilo, formatos e desenhos Maasai.
Como justificativa, as multinacionais costumam se valer do mesmo expediente: tentar legitimar essa contrafação chamando-a, capciosamente, de “inspiração”.
Infelizmente, esse tipo de expropriação tende a aumentar, deflagrando o uso ilegal, não autorizado e altamente rentável dessas manifestações artísticas por grandes marcas.
Essas notícias trouxeram-me à mente todas as mediações interculturaise negociações de contrato transcultural de cessão de direitos autorais da tribo Kadiwéu, realizadas em 1997 por seus assessores jurídicos e descritas na “Meritum”, revista de direito da Universidade Fumec, em Belo Horizonte (MG).
Os Kadiwéus, instalados em reserva no Mato Grosso do Sul, são produtores de arte refinada, principalmente na forma de pintura corporal e cerâmica.
Há pouco mais de 20 anos, após consulta popular, projeto de renovação de parte do bairro Hellersdorf, em Berlim, escolheu temáticas sul-americanas para caracterizar conjunto de imóveis de 10 mil apartamentos, sendo realizado concurso entre as índias Kadiwéuspara obter e enviar os desenhos.
As artistas reuniram-se em assembleia e decidiram a distribuição do prêmio para todas as participantes do concurso, formalizando entendimento em ata. Foram 272 desenhos elaborados por 92 índias.
Assim, transferiram-se os direitos autorais à Associação das Comunidades Indígenas da Reserva Kadiwéu, como forma de evitar que as obras não selecionadas fossem depois vendidas a baixo preço.
As técnicas de mediação empregadas à época auxiliaram nos trâmites de licenciamento dos direitos e permitiram a transcendência das diferentes visões de mundo para cada parte ter suas questões representadas em acordo.
A atenção com esse tema é crescente no Brasil, em que pese o menor poder de exposição desse problema pelas organizações que atuam nas causas indígenas.
De toda forma, a reprodução não autorizada, em diferentes formatos, de artes visuais de povos indígenas constitui apropriação indevida de bens culturais, violação à propriedade intelectual.
Essa relação deve respeitar direitos, tradições e costumes próprios.
No lugar da simples relação de compra e venda de direitos de uso há, muitas vezes, a obrigatoriedade de discussão do tema por toda a comunidade, pois as decisões, comumente, são tomadas pelo conjunto dos indivíduos.
Neste contexto, a proteção conferida aos Kadiwéus figura como “leading case” no sentido de garantir a proteção dos direitos de propriedade intelectual aos povos indígenas e a correta distribuição de valores entre as partes, através de um processo de mediação transparente e organizado, capaz de compreender diferentes mundos e suas formas de diálogo.
PIERRE MOREAU é sócio fundador do Moreau Advogados e da Casa do Saber. Membro do conselho de direito do Insper, é autor e organizador de diversas obras, entre as quais “Grandes Crimes” e “As Letras da Lei e Grandes Advogados”
Clique aqui e lei o original na Folha de São Paulo.