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Percival Maricato*
A perda inaceitável de nove vidas no bairro de Paraisópolis e toda a celeuma por suas causas obriga a sociedade à seguinte reflexão: Jovens pobres têm direito ao lazer? Á sociabilidade? Ao namoro? Se têm esse direito, o que fazer para que isso se torne possível? A população pobre organizou o que denominamos de pancadões noturnos ao ar livre para suprir essa necessidade. Estes, porém, incomodam outra parte da população, que quer e tem o direito de dormir, em sossego. O Estado, quando se propõe a resolver essa situação, tem como recurso primário, o envio da polícia.
Na mesma cidade, num outro contexto, casas noturnas têm capacidade de oferecer divertimento somente para centenas de milhares de pessoas, aonde não há espaço para o público dos pancadões. Isso porque, para funcionarem, devem ser estabelecimentos regularizados, com bebidas de origem segura, serem fiscalizadas pela prefeitura, fiscos, bombeiros, órgãos sanitários, de proteção ao consumidor, ter funcionários registrados, obedecer a lei municipais, que exigem “isolamento acústico, manobristas e seguranças”, consequentemente com ar condicionado e mais algumas dezenas de exigências. Bares, que ajudam nessa finalidade, têm que fechar pontualmente até uma hora da madrugada, mesmo que não incomodem ninguém, se não tiverem isolamento acústico, manobristas e segurança. E quem põe isolamento acústico tem de ter ar condicionado, mas, sabemos, bares fechados são pouco procurados pela população, que adora uma mesa na calçada.
Para casas noturnas atenderem tantas legislações, órgãos de fiscalização etc., se exige investimento altos, os quais aumentam o risco do negócio; assim, apenas jovens de estratos de maior renda da classe média e alta podem frequentá-las, pois o preço do ingresso, alimentos e bebidas são, necessariamente, caros.
Nesse contexto é natural que muita gente procure se divertir indo a casas clandestinas ou semiclandestinas e a locais abertos, onde não há cobrança de ingresso, que se multiplicam pela cidade e divertem multidões.
De fato, há aspetos negativos nestes eventos, sendo os principais incomodar moradores das proximidades, que sequer conseguem dormir (próprio dos pancadões); consumo de bebidas batizadas ou irregulares, de alimentos sem controle sanitário; ambiente propício para a oferta de drogas ilegais etc.
O problema de controles que tornam caro o investimento em casas noturnas, tanto como o de busca solução para que jovens mais pobres tenham lazer vem de longa data e é universal. No ano 2000, na civilizada Suécia, 63 jovens morreram em incêndio de uma discoteca. Ao contrário do que aconteceu em São Paulo, onde a tragédia foi minimizada, o governo do pais quase caiu, o parlamento abriu inquéritos, toda a sociedade reagiu. A conclusão das comissões formadas para apurar o fato foi unânime: era tão caro e burocrático montar casas noturnas regulares que isso estimulou a formação de extensa rede de outras, irregulares, sem nenhum controle ou fiscalização estatal. E estas tinham todo tipo de armadilha. A que pegou fogo era coberta com plástico, não tinha saída de incêndio. Tragédias parecidas aconteceram na China, no Paraguai e outros países. Não se compare com o Rio Grande do Sul, em estabelecimento regular, de classe média, onde, no entanto, a fiscalização inexistiu por incompetência e corrupção, um outro problema igualmente grave.
O conflito entre o direito de parte da população pobre ao divertimento e defesa contra alimentos e bebidas sem controle, e de outra parte dessa população ao descanso, é um problema a ser resolvido pela sociedade e o Estado com uso da sensibilidade e inteligência e não pela polícia.
Talvez seja possível a transferência dessas verdadeiras festas populares para locais mais longe de moradias e com altura do som, tanto como alimentos e bebidas, sob maior controle. Certamente, a Prefeitura e o Estado poderiam pensar em permitir abertura de casas noturnas sem tantas exigências, que tornam por demais elevados os investimentos e consequentemente os preços a serem pagos por frequentadores. As escolas de samba têm muito a ensinar, pois fazem grandes eventos, com multidões, mas onde seus próprios componentes cuidam da segurança dos frequentadores, onde não faltam crianças. Facilitar que organizações esportivas-sociais cuidem de organizar eventos desse tipo talvez ajude.
Enfim, é bom pensar no problema, pois ele continuará a existir. Não será com violência que proibiremos o acesso dos pobres ao divertimento proporcionado por música e dança, local de paquera, amizade, amor, fundamentais para ser ter um mínimo de felicidade na vida.
*Percival Maricato, advogado e sócio do Maricato Advogados
Leia no Blog do Fausto Macedo do Estadão, aqui.