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A criminalização do devedor de ICMS é o mais recente capítulo de uma caça às bruxas. O STF confirmou decisão do STJ segundo a qual o empresário que, em operação própria, declara e não recolhe no prazo legal o ICMS, quando da venda ao consumidor final, comete crime de apropriação indébita tributária e pode vir a sofrer procedimentos de apuração penal. Posteriormente, confirmado o ilícito, haverá denúncia pelo Ministério Público Estadual e processo judicial que poderá culminar com sua condenação de seis meses a dois anos de prisão, conforme agravantes e atenuantes no caso concreto.
Tudo começou a partir de processo contra dois pequenos empresários de Santa Catarina que deviam cerca de R$ 30 mil de ICMS aos cofres públicos, imposto esse declarado entre 2008 e 2011 e não pago. A dupla até que tentou quitar a dívida através de três parcelamentos e, como nunca completaram os pagamentos, foram então denunciados em processo penal por um “zeloso” promotor estadual. Tão só o valor da dívida já mostra as dificuldades vividas pela dupla. O fato de fazerem três parcelamentos deixa clara, ad nauseam, a vontade de pagar. E, se não pagaram, está claro que o foi por ausência de recursos suficientes. Cobrar de uma pessoa nessas condições (empresário ou não) simples dívida através de procedimento policial-criminal é verdadeira extorsão, um atentado contra a capacidade contributiva, um verdadeiro confisco; portanto, infrações à Constituição Cidadã, aprovada após longas lutas para acabar com injustiças.
Sem dúvida se trata de mais uma concessão do Judiciário à mencionada caça às bruxas que caracteriza o momento atual, onde repressão, coação, delação, criminalização, punição parecem ser solução para todos os males. A decisão reforça o sentimento de estarmos em uma sociedade acuada, ressentida, tocada pelo medo e pelo ódio à diversidade (de cor de pele, de origem geográfica ou social, de ideologia etc.), estimulada pelas fake news, como jamais houve no país. Basta dizer que esse entendimento não era esposado por nenhum juiz antes de 2018. E este caso se originou de discussão em que magistrados divergiram desde a primeira instância, colocando em campos opostos a 5.ª e a 6.ª° Turmas do STJ, com unificação, mas ainda com votos divergentes, pela 3.ª Secção, e subida ao STF, onde também houve votos divergentes. Ou seja, não faltam visões diferentes sobre a questão, mas formou-se maioria para onde o vento sopra no momento: punição das mais duras, sem se pensar nas consequências futuras, nos reflexos em outras áreas. A simples inadimplência já se tornou espécie de apropriação indébita tributária. Ressuscitamos a prisão por dívida.
Além da ciência jurídica, principalmente do Direito Penal, perde o empreendedorismo, perdem centenas de milhares de empresários, o consumidor, o próprio fisco, pois teremos menos atividade econômica. Ganham os governadores atuais, que poderão gastar por conta o que vão receber com mais esta fonte de arrecadação. Empresários apavorados poderão fechar seus negócios e outros, em dificuldade, irão preferir pagar o fisco em vez de funcionários, credores, locador, para não terem de frequentar delegacias de polícia, serem levados às barras dos tribunais, arriscarem-se a decretos condenatórios. Será difícil inicialmente que empresários primários sejam arrastados à prisão. Mas dos condenados, já sem primariedade, quem se arriscará a empreender de novo, sem a possibilidade de se livrarem da pena, de se verem fechados nas prisões infectas e superlotadas? A perderem de vez a liberdade, a honra, a imagem de homens honestos, sem os quais é inviável sobreviver como empresário no mercado, em tempo de compliances, obter crédito junto a fornecedores e bancos etc.
Relevante dizer que os prejudicados neste caso são principalmente os pequenos empresários. A grande maioria deles, ressentida com a corrupção, vem reforçando imoderadamente essa corrente de mais repressão na sociedade. Os ministros do STF que votaram a favor da criminalização de quem não paga ICMS são os mesmos que votaram a favor da prisão após condenação em segunda instância (Fux, Fachin, Carmen etc.); foram coerentes, querem mais aplausos. Execução de condenações após segunda instância poderão valer em outras áreas do direito e voltar a atingir empresários. Centenas de milhares deles (só em São Paulo haveria mais de 180 mil empresas devedoras de ICMS) dirigem negócios que mal se equilibram financeiramente, mas que ainda geram serviços, empregos, alguma renda, sustentam famílias. Não conseguem pagar ICMS, mas recolhem diversos outros tributos; em várias situações os decorrentes de substituição tributária, paga ao se adquirir boa parte dos produtos a serem postos à venda. Com ou sem execuções fiscais, muitos se recuperam – não faltam exemplos – e acabam por recolher o tributo; outros, infelizmente, quebram.
Com a decisão do STF, haverá, momentaneamente, maior recolhimento de tributos aos cofres estaduais, mas certamente muitos potenciais empreendedores deixarão de investir, muitos empresários fecharão suas portas, reduzindo a atividade econômica em um período de crise generalizada, aumentando o desemprego, eles próprios engrossando essa massa. No longo prazo, haverá menos atividade e menos tributos pagos. O sobrecarregado Judiciário penal terá mais algumas dezenas de milhares de processos e essa gente toda engordará o distribuidor penal, perderá a primariedade, estará entre os inadimplentes. Há o inegável estímulo ao cipoal tributário, à corrupção e à sonegação pura e simples (por que declarar e correr mais riscos? Fica-se muito mais exposto). E isto representa mais informalidade.
Ser empresário, enfim, passa a ser duplamente arriscado; pode-se doravante perder as economias e a liberdade. Pode ainda haver restrições a contratar com o Estado, fazer viagens ao exterior etc.
A decisão é uma deturpação do Direito Penal, que deveria ser usado apenas em estados de real necessidade de defesa da sociedade e não estar a serviço da máquina arrecadatória, que já leva quase 40% do que é produzido, e à qual não faltam elementos para fazer cobranças impositivas na área tributária.
Há de se discutir questões técnicas relevantes. Quanto a dúvidas sobre o acerto da decisão, basta ver os muitos votos divergentes tanto no STJ quanto no STF. Pela tese vitoriosa, o comerciante agiria apenas como um depositário: o valor do ICMS apenas “transitaria” por sua conta e deveria ir para a do fisco. Para os votos divergentes, isso só é verdade quando o comerciante age recolhendo valores de terceiros, como no caso do INSS do funcionário – este, sim, a ser recolhido ao fisco. E de fato, na venda ao consumidor final, o comerciante cobra um preço único, em que estão embutidos todos os seus custos e, quando possível, sua margem de lucro e o ICMS. Às vezes nem margem de lucro ocorre, em casos de muita concorrência e consequente redução de preços, nas promoções etc.
Enfim, se o empresário declara o imposto, se não procura fraudar o fisco, deveria ser considerado apenas inadimplente, não se conduz com dolo. É como se interpretou por anos a mesma situação. Não faltam ao Estado formas de cobrança: execução fiscal com penhora de bens, arresto, arrolamento, protesto (até dívidas de R$ 1 mil estão sendo protestadas) etc.
Mesmo os ministros pró-criminalização sinalizaram a inconveniência de ser fazer persecução criminal contra empresários que não pagaram o imposto porque simplesmente não lhes sobraram recursos. Portanto, quando o empresário não vai bem, quando sua empresa entra no negativo, quando ele é obrigado a investir mais recursos próprios e não consegue retirar nem sequer pró-labore, pede empréstimos, vende partes do patrimônio para pagar funcionários, isso deve ser muito bem contabilizado, pois pode não evitar que seja processado, mas pelo menos servirá para sua defesa.
Por outro lado, no processo penal, cabe ao Estado denunciar e provar a existência de crime. Mas nos tempos que vivemos é bom tomar precauções. Não se pode duvidar que surgirão juízes capazes de decidir que, “tendo em vista a teoria do equilíbrio dinâmico da prova”, o fato de ser mais fácil ao empresário fazê-la, deve ele se responsabilizar pela mesma, contraditar argumentos genéricos do Ministério Público. É o que se chama “inversão do ônus da prova”, comum na área cível.
Entendemos que os fundamentos para a desconsideração da pessoa jurídica, conforme previsto no recentemente alterado artigo 50 do Código Civil, deverão estar presentes no que puderem contribuir: desvio de finalidade e confusão patrimonial, e, exigindo-se ainda o dolo, o elemento subjetivo, que não se exige para a desconsideração no cível. Não pode haver apropriação de ICMS sem confusão patrimonial. E, sendo assim, quem deve constar do polo passivo da ação penal é o sócio ou sócios delinquentes da empresa, ou os beneficiados, os majoritários e ou os administradores. Existindo fraude e cumplicidade de um gerente, contador ou seja lá quem for, estes podem ir parar no banco dos réus. Neste caso, tendo em vista o instituto da delação, é bom que o empresário se cuide.
Há de se considerar ainda o instituto da prescrição, ou seja, a extinção do direito do Estado de condenar ou até de promover o processo crime. Isso ocorre, pela pena em abstrato, quando o ilícito for deixar de pagar o ICMS em quatro anos (em geral, o dobro da pena maior). Pela pena em concreto, ou seja, aquela que é cominada pelo magistrado, conta-se o dobro do tempo da condenação. Nesse caso, o empresário é condenado, mas a pena fica sem efeito: o direito de o Estado punir se extinguiu por não ter sido exercido há tempo. Pode-se dizer que a grande maioria dos empresários atualmente processados por dívidas de ICMS já teve prescritos seus “crimes” na área penal.
A acusação do empresário pressupõe, mesmo na área penal, a desconsideração da pessoa jurídica (no caso, a empresa). E, ainda como característica do Direito Penal, a condenação exige responsabilidade subjetiva e dolo. Não pode, pois, o MP acusar todos os sócios sem individualizar condutas, buscar a punição do responsável, que não é necessariamente o majoritário, às vezes nem sequer o administrador principal. E, acusando, tem de provar a existência de dolo, o que não ocorre no Direito Civil. Na recente Lei da Liberdade Econômica, que alterou o artigo 50 do Código Civil, os legisladores admitiram para a desconsideração da pessoa jurídica a confusão patrimonial e o desvio de finalidade, retirando a necessidade do dolo para que ela ocorresse. No entanto, pelo menos até o momento, ainda se exige dolo para o fato ser considerado um crime.
A pena para o “novo” crime é de seis meses a dois anos. Portanto, com essa pena, sendo a pessoa de boa índole, primária, não irá parar na prisão. Poderá ser condenada a prestar serviços à comunidade, ou pagar multas. Na pior das hipóteses, feita a denúncia, quando o devedor for chamado para responder ao processo penal, pode pagar a dívida antes da condenação e extinguir o processo e a pena. Por isso, no momento, convém ao empresário manter a calma, ler, ir a reuniões de sua entidade, assistir a palestras, escutar advogados. Com esclarecimentos, terá mais tranquilidade e assim não deixará que esse revés atrapalhe ainda mais seu negócio.
O constrangimento e o prejuízo ao crédito, à imagem e à autoestima será inevitável. Só ter de responder ao inquérito e ao processo já será constrangedor para o empresário, seu negócio e sua família. Se a situação já é difícil, se persistir com o negócio, certamente terá mais dificuldades de manter fornecedores e clientes, haverá desgaste para a marca, a autoestima será tão atingida quanto o crédito.
Reitere-se: a partir de agora, os empresários devem tomar muito mais cuidado com contabilidade, prova de despesas, incidentes que geram prejuízos, novos investimentos na empresa, trabalho e responsabilidade no dia a dia; devem, enfim, provar que geriram seus negócios com toda idoneidade e que, se não pagaram tributos, isso decorreu de deficiências do próprio negócio, ou até de sua inabilidade (ou imperícia, uma das modalidades de culpa, evitando outras duas: imprudência e negligência), e não de apropriação de recursos, despesas pessoais e confusões patrimoniais, em que um promotor pode julgar que está incluído o ICMS não recolhido.
Há inúmeros casos em que há divergência sobre alíquota, sobre incidência ou não de ICMS, elisões etc. O Ministério Público certamente não respeitará o fim de um processo administrativo ou judicial para fazer a denúncia em juízo penal. Porém, depositando o valor, o empresário deixará de correr riscos. E, se assim não for, caberá ao MP provar a existência de dolo, qual dos sócios delinquiu. Tudo isso deverá ser discutido doravante. Mas muita gente preferirá pagar sem discutir para não ser levado a julgamento penal.
Pode-se dar um exemplo recente de casos de suprema injustiça. Em 2019, o governo de São Paulo começou a cobrar ICMS de pescados de restaurantes, peixarias, feirantes, o que nunca fez antes, tudo com base em nova interpretação de lei existente. E, não satisfeito, cobra todo o valor vencido desde 2015. Milhares de comerciantes, pequenos empresários que procuram sobreviver honestamente no mercado, começam a trabalhar às 5 da manhã ou até mais cedo, pois acordaram devendo milhares – em muitos casos, centenas de milhares – de reais ao fisco do estado mais rico da nação. E fiscalizações intensas e ameaçadoras foram postas nas ruas. Esses empresários nunca pensaram em adicionar ICMS aos custos do pescado vendido nesses anos passados, nunca recolheram ICMS, pois o fisco não cobrava valores correspondentes ao produto. Não obstante, agora sofrem mais essa ameaça, de serem processados penalmente por recursos que nunca “transitaram” por suas contas. Poderão até ser inocentados; poderão, mas não deixarão de ser processados se o MP levar a sério a decisão do STF. E, se muitos já pagavam por medo de fiscalizações tributárias, agora têm como mais uma ameaça o processo penal. Há ações judiciais questionando essa cobrança, propostas pela Abrasel, mas o fisco e o promotor não irão esperar pela decisão.
O que mais se pretende, porém, do sistema judiciário, doravante, é maturidade, razoabilidade e distinção entre os sonegadores renitentes (os que podem pagar tributos, mas não o fazem) e os empresários que não pagam por não conseguirem, por passar por dificuldades. Nessas horas, estes sempre optam por pagar funcionários, aluguel, fornecedores, pois precisam continuar de portas abertas, até para que possam pagar tributos devidos no futuro. Ninguém mais que o Estado – o Judiciário inclusive – deve colaborar para a sobrevivência das empresas.
*Percival Maricato é advogado.”
Leia na Gazeta do Povo aqui.