A caducidade da MP 927 e seus principais reflexos nas medidas trabalhistas de trato sucessivo
02/08/2020Ela perdeu R$ 150 mil em um relacionamento.
03/08/2020Covas coletivas, crianças com aulas suspensas, ruas desertas. Presidente morre de epidemia que assola o país. Ficção, filme de terror ou mais um noticiário ou redes sociais? A descrição retro se remete a passado não tão distante há pouco mais de um século com a crise causada pela gripe espanhola no país. O que aprendemos com esse ciclo de passado recente da história brasileira e mundial?
No topo da cadeia das medidas da prevenção são apontadas medidas que remetem a história de todas as pandemias da história da humanidade — isolamento social e hábitos higiênicos. Foi descoberta a roda? Qual foi o grande avanço científico, social e econômico no trato com graves crises de saúde pública?
Dentro desse contexto exsurge a necessidade de prestação de condolências às vítimas e familiares dessa pandemia mundial com registro histórico de seus nomes, histórias pessoais, bem como os avanços e retrocessos advindos no incremento de políticas sociais, econômicas de gestão de crises, mas sobretudo o fortalecimento de valor indispensável à sobrevivência da própria espécie humana: a solidariedade.
Dentro desse contexto histórico e solidário exsurge o Memorial Avarc, como registro histórico desse momento, mas sobretudo por ter o legislador constitucional confiado ao Ministério Público o dever de ser o interlocutor entre os anseios e necessidades da sociedade com os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (arts. 127 a 129 da CR).
Entes considerados pelo inconsciente coletivo como abstrações, tais como Estado, sociedade passam a se concretizar por meio de ações concretas motivadas por um único elo de ligação: a solidariedade. Por motivos nobres ou egoísticos a solidariedade passa a ser percebida como dever de todos. Tal como no passado o socorro passa a ser desempenhado pelas instituições e cada um passa a perceber que as desigualdades sociais e econômicas não favorecem ninguém, mas potencializam a fragilidade da vida humana.
A iniciativa que inclui entidades e membros da sociedade civil retrata não apenas o momento histórico, mas potencializa a conscientização inerente ao ciclo natural da vida — seu nascimento, desenvolvimento e morte. O memorandum tem por objeto o ser humano em sua totalidade, considerando seu aspecto biofísico, psicológico, social e espiritual. Passado o sentimento de impotência gerada pela maior crise da humanidade, é tempo de absorver o aprendizado advindo desse trauma a fim de que estejamos preparados para o enfrentamento de desafios futuros.
Vivenciamos momento histórico em que o corpo assumiu funções involuntárias como a hipervigilância, podendo ocasionar crises de pânico, angústia. Os estímulos sociais e divulgados pela mídia de manutenção de alerta constante pode trazer sérias implicações para a saúde mental e para os indivíduos. Não nos foi dado momento de reflexão, tendo sido subtraído importantes conexões da vida cotidiana diária, o que constitui a verdadeira essência do ser humano. A título de exemplificação nos foi tolhido o direito de despedida dos familiares e amigos falecidos, independente da religião professada. Souza e Souza (2016, p.1) aponta que o ritual fúnebre possui a função de pontuar as mudanças ao longo da vida, e que a prática desses rituais auxiliam na simbolização das mudanças e elaboração das perdas associadas. A ausência de rituais fúnebres impede a despedida apropriada daquele que se vai e que a sua lembrança possa servir de supedâneo para o prosseguimento da vida daqueles que ficam. Souza e Souza (2016, p. 1):
Os estudos acerca dos rituais humanos têm mostrado que as mudanças ao longo da vida, incluindo a morte de entes queridos, precisam ser marcadas, pontuadas, de forma que estes acontecimentos recebam a consideração necessária. (…) os significados e funções dos rituais fúnebres como benignos para a elaboração da perda da morte de uma pessoa significativa. Sustenta-se que o caráter expressivo dos rituais possibilita descrever o que não se consegue expressar em palavras, estimulando o trabalho de luto e desempenho importante função de maturação social e psicológica diante da perda. Possibilita também a contextualização de uma experiência de perda, oferecendo à família enlutada o suporte de pertencer a uma cultura e a uma compreensão compartilhada sobre a morte.
Tais sentimentos assumem caráter exponencial quando o luto passa a ser compreendido como fenômeno coletivo, causando-se expressivo trauma coletivo, histórico e cultural. Trata-se de momento de união da humanidade independente da localidade no cenário global, uma vez que todos os seres humanos vivenciam o mesmo momento histórico, sendo que expressivos são os casos em que houve a perda de ente querido com ou sem a doença Covid-19 — seja para outras doenças como câncer, suicídios, violência social ou praticada pelos próprios integrantes daqueles que tem o dever de preservar a vida e a incolumidade pública. À vítima foi ceifado o seu direito a morrer com dignidade, na companhia de seus entes queridos. Aos sobreviventes foi tolhido o direito ao luto com os rituais que lhe são inerentes. Tais reflexões permitem admitir a necessidade de retomada do movimento inerente a vida, com destinação de espaço destinado físico e virtual que possibilite reflexão das suas implicações, lembrança e homenagem àqueles que partiram.
Para simbolizar a necessidade de conexão do ser humano com o seu passado, reconciliação com o seu presente a fim de traçar caminhos futuros foi lançada a plataforma Memorial AVARC e proposto ao gestor público a destinação de área de homenagem àqueles que partiram, instituindo-se cápsula do tempo com todos aqueles que partiram, a história da pandemia desde o seu surgimento até o desenvolvimento de vacina que permita com segurança a retomada do curso natural da vida. A interação proposta nos convidam para um momento de reflexão e meditação em espaço interativo e acessível ao público (http://avarc.com.br/memorial/).
A criação de espaço de convívio compartilhado do luto e de esperança àqueles que seguem aliada a sustentabilidade do espaço público pertencente as presentes e futuras gerações permite a manutenção da qualidade de vida, pois o contato com a natureza interfere diretamente na saúde das pessoas.
A simplicidade e a integração com o meio ambiente remetem a finitude dos recursos naturais, a necessidade do seu uso responsável e a preservação de nossa identidade histórica e cultural. A obediência as normas e regramentos sociais com ênfase na memória e contemplação permite que todos tenham acesso a esse memorial virtual e físico construído in memoriam das vítimas diretas e indiretas da pandemia mundial. https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/07/23/mp-de-sp-cria-capsula-do-tempo-em-memoria-das-vitimas-da-covid-19-com-cartas-de-despedida-de-familiares.ghtml.
Celeste Leite dos Santos é promotora de Justiça, doutora em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP), gerente e coordenadora do Projeto Avarc do MP-SP e membro do Movimento do Ministério Público Democrático.