Câmara dos Deputados | Frente Parlamentar em Defesa da Desoneração da Folha de Pagamento – 28/08 – 11h
28/08/2020STF forma maioria pela tributação do terço constitucional de férias
28/08/2020janaina Garcia
Colaboração para Universa
28/08/2020 04h00
Os dez anos de casamento entre a médica Luciana e o empresário Augusto* chegaram ao fim há dois meses, em plena pandemia da covid-19 no Rio de Janeiro. Ainda não é fácil para ela falar sobre o assunto. Foram muitos palavrões, ameaças, chantagens e ridicularizações constantes em relação à forma física, conta Luciana. Embora os comportamentos agressivos não fossem exatamente uma novidade ao longo da última década, eles se intensificaram com a presença intensiva do marido em casa.
“Ele me ridicularizava pela minha forma física, dizia que eu estava gorda, me chantageava sobre a guarda do nosso filho e sobre o apartamento, caso eu me separasse dele”, diz. “O único momento na quarentena em que eu e algumas amigas decidimos conversar por vídeo sobre assuntos que não fossem maternidade, a conversa durou 15 minutos: o menino estava acordado, agitado, fazendo barulho, e eu acenava ao Augusto para ele ficar um tempinho com a criança, em vão. Quando disse que queria conversar com minhas amigas, ele me disse, agressivo: ‘Que amigas? Você não tem amizade nem com um rato’.”
Dias depois desse episódio, a médica relata, o empresário agrediu o menino em uma discussão trivial de pai e filho -o menino tem quatro anos; o pai, 60. “Foram muitas cenas pesadas durante essa pandemia, ouvi as piores coisas que uma mulher pode ouvir. Mas ver meu filho com a perninha marcada, toda vermelha, acabou comigo. Disse a mim mesma: ‘não dá mais’, peguei um empréstimo, paguei uma advogada, o denunciei e consegui uma medida protetiva. Sinto que tenho um longo caminho até me reconstruir, mas o alívio é muito grande.”
O relato da médica ilustra a forma mais subjetiva de violência doméstica, ainda pouco notificada, segundo os especialistas em violência contra a mulher, mas que costuma preceder crimes mais graves e irreversíveis, como o feminicídio. Luciana denunciou o parceiro pelo crime de violência psicológica, que está previsto na Lei Maria da Penha e pode ser descrita como a ação ou omissão que se destina a degradar ou controlar as ações da mulher, causando a ela dano emocional e diminuição da sua autoestima.
Costuma ocorrer por meio de ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e até limitação do direito de ir e vir.
Com dados sobre a violência contra a mulher no estado do Rio de Janeiro, o documento Dossiê Mulher 2019, elaborado pelo Instituto de Segurança Pública e pelo governo estadual, apontou que a violência psicológica, “por ser de difícil identificação, é largamente negligenciada, até mesmo por quem sofre este tipo de violência, que, muitas vezes, não consegue ou demora a percebê-la, principalmente quando vem camuflada por ciúmes ou sentimento de posse por parte do agressor”.
O levantamento do ano passado, elaborado com dados do ano anterior, revelou que delitos como ameaça e constrangimento ilegal — ou seja, obrigar a vítima a executar determinada conduta, inclusive, uma prática ilegal —, alguns dos tipos mais comuns relacionados à violência psicológica, registraram aumento de 2017 para 2018 —foram 34.348 mulheres ameaçadas em 2017 e 37.423 no ano seguinte. Vítimas de constrangimento ilegal passaram de 393 em 2017 para 404 em 2018.
Mesmo sem um levantamento oficial dos dados deste ano, já houve quem sentisse o aumento da demanda de casos de violência psicológica em escritórios de advocacia.
“Essa é uma modalidade de violência doméstica, que, em muitos casos, é a porta de entrada para casos mais graves, como a agressão física ou o feminicídio. Mas ainda é muito subnotificada e, mesmo para operadores do direito, ainda é uma modalidade pouco conhecida”, afirma a advogada Tatiana Moreira Naumann, que lida com questões de direito de família e direitos da mulher.
A advogada Tatiana Naumann
Imagem: Arquivo pessoal / PH de Noronha
A profissional, que atende em um escritório no Rio, diz ter observado um aumento de 70% da demanda de casos de violência psicológica durante a pandemia.
“Nunca trabalhei tanto na vida porque os casos aumentaram exponencialmente. Isso de estar todo mundo confinado alterou as relações, mas sobrecarregou, ainda mais em relação aos filhos, principalmente a mulher”, afirma. “Até as redes de apoio foram afetadas, como pais ou avós que não podem mais ajudar, por serem de grupos de risco. E, como não raro o homem é o provedor, isso deixou muitas mulheres em situação de maior vulnerabilidade.”
Ainda de acordo com a advogada, além do desconhecimento sobre essa modalidade de violência doméstica, ainda é comum que nem todas as mulheres tenham condições financeiras de acessar a justiça. “É como se fosse um luxo a mulher que consegue registrar uma ocorrência”, diz, referindo-se ao fato de que nem todas as mulheres que buscam denunciar seus parceiros têm condições de acionar um profissional do direito.
A própria Tatiana relata já ter sofrido violência psicológica. “Eu pesava 50 kg a mais do que peso hoje. E me relacionava com um cara que falava do meu peso, do meu corpo. Você começa a se desgostar, sua autoestima fica destruída”, diz.
Como identificar um caso de violência psicológica?
A advogada dá algumas dicas para auxiliar mulheres a identificar se estão sendo vítimas de violência psicológica.
“A mulher passa a ser humilhada, manipulada, chantageada, ridicularizada. A autoestima se deteriora. Não é mimimi, não: isso tudo está na lei. E, se está na lei, é crime. Se o sujeito não concorda com a lei, oras, ele que lute para mudá-la”, diz.
“Pode ser desde um ‘você está ridícula com essa roupa’, ‘seu corpo está horrível’ no sentido de humilhar a parceira, até uma chantagem como a que ouvi de uma vítima: ‘Se você não pegar água para mim quando eu peço, não pago mais sua comida’. Começa de um jeito sutil, manipulador. A mulher deve entender que não precisa esperar chegar à violência física para isso também ser violência”, diz.
Tatiana ressalta a diferença entre esse tipo de violência e assédio moral: o primeiro ocorre no âmbito de uma relação conjugal, e o segundo no ambiente de trabalho, por exemplo. E afirma que a violência psicológica é bem mais comum do que se possa imaginar.
“Esse é um tipo de violência que depende muito da palavra da vítima, mas que é muito mais frequente do que a gente imagina. Muito provavelmente alguma amiga sua ou minha já sofreu violência psicológica de parceiro ou parceira. E quando essa mulher se senta para falar, acaba se lembrando de um monte de coisa que ela nem imaginava que era violência domestica também.”
Viagem foi divisor de águas: “Era como se eu tivesse renascido”
A médica Luciana conseguiu a medida protetiva há dois meses, duas semanas depois de ir à delegacia denunciá-lo. E dez anos depois de uma vida de humilhações da qual achou que não fosse mais se libertar.
“Desde o início da nossa relação havia situações assim. Aos poucos, fui abrindo mão do que eu era, das minhas amizades, sem me dar muita conta”, relata.
No rol do que ela perdeu, ficaram a academia, os passeios na praia, o encontro com as amigas no shopping. “Combinei um encontro com amigas de colégio e cheguei em casa 22h30. Ele ficou três dias mal falando comigo, em uma posição de ofendido. Comecei a me sentir culpada a tal ponto que deixei também de ir à praia e à academia. Ia ao shopping sozinha”, conta.
A vida profissional da médica também era motivo de discórdia. “Eu sempre trabalhei com pesquisa, em um dia a dia de trabalho mais solitário, e ele trabalhava no centro, sempre almoçava com os amigos, jogava tênis uma vez por semana e chegava em casa já tarde da noite. Já quando eu dizia que precisava viajar para algum congresso, coisa que sempre fiz antes de nos casarmos, ouvia dele que ‘congresso é só putaria’. Sempre havia um comentário que me fizesse sentir inferiorizada a respeito de tudo que fosse relacionado ao meu bem-estar físico ou emocional.. Era um ciúme disfarçado de zelo, de proteção…”
Alguns sinais mais explícitos de que a relação já estava naufragada viriam em uma viagem com mães e alunos da creche onde o filho estava matriculado.
“Eu estava com 73 kg, mas, de tanto ele dizer que eu estava horrível, fiz o que pude para emagrecer e me sentir menos desconfortável em ir à piscina do hotel com meu filho. Cheguei aos 65 kg. Naquela viagem, eu me dei conta de que eu não me via como mulher havia muitos anos. E só senti isso porque vi outros homens olharem para mim. Era como se eu tivesse renascido.”
Ela conversou sobre separação com o marido no Carnaval do ano passado. Ele não aceitou sair de casa e ainda passou a disparar ofensas mais frequentemente.
“Creio que, nesse processo todo, ser mãe é o que me dava forças para seguir lutando. E minha maior responsabilidade é criar um homem que não diminua a mulher dessa forma”, diz.
Luciana ainda enfrentou mais turbulências ao pedir ajuda da família na separação. “Minha mãe tentou me convencer a falar com meus irmãos, que não sabiam pelo que eu passava, porque não queria dividir aquele sofrimento com ninguém. Quando falei com meu irmão mais velho, ele começou a gritar comigo ao telefone, indignado com o fato de eu ter posto meu marido para fora. Desliguei o telefone, porque só eu sei o que enfrentei até dar um passo desse.”
Indagada se recomenda que outras mulheres vítimas de violência psicológica busquem romper com o ciclo de abuso, Luciana não titubeia: “Sim, porque a gente não tem que se anular por ninguém. Esse é um preço alto demais a se pagar. Amor próprio é uma coisa poderosa. Demorou, mas estou voltando a acreditar nisso.”
Congresso online debate violência psicológica
A violência psicológica enquanto uma das modalidades de violência doméstica será tema também de um evento online marcado para este sábado (29) às 17h. A palestra “Violência Psicológica no contexto da Lei Maria da Penha” terá a participação de convidadas como Celeste Leite dos Santos, promotora de Justiça em São Paulo e gestora do projeto de acolhimento de vítimas, análise e resolução de conflitos do Ministério Público estadual, como parte do congresso sobre os 14 anos da lei, organizado pelo Instituto de Juristas Brasileiras. O evento é gratuito. As inscrições podem ser feitas neste site.
* Os nomes foram trocados a pedido da entrevistada