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03/12/2020Conhecimento é poder
quinta-feira, 3 de dezembro de 2020
Scientia potentia est; O conhecimento é poder: O aforismo do século XVII retrata as turbulências no método de solução de conflitos do século XXI. Sem acesso à informação, estaria o poder de decisão realmente nas mãos do acionista-quotista? Quais são os limites da sobreposição do dever de informar e o direito ao sigilo no processo arbitral? E como solucioná-los?
Na era da IoT (internet das coisas), big data, e web 4.0, a informação tem papel cada vez mais relevante na sociedade. Seja em decisões triviais, condução de negócios ou alocação de investimentos, estamos constantemente buscando, cruzando e contrapondo informações.
Na essência da busca incessante por informação temos, em verdade, o intuito da mensuração de riscos, que, uma vez identificados, são alocados entre as partes de qualquer negócio, expressamente, por contrato ou norma, ou de forma reservada.
No mundo contemporâneo, o que se denota é que as informações estão disponíveis de forma cada vez mais ampla, acessível, abundante e descentralizada.
Naturalmente a busca por informações, no contexto da alocação de riscos, não tem como foco qualquer informação. A informação relevante é aquela inserida no meio adequado, permeada de uma rede ou estrutura de confiabilidade, onde podemos distinguir as opiniões dos fatos, atestando sua veracidade e qualidade, conforme juízo do interlocutor.
Assim, no processo de tomada de decisões, as informações se complementam, confirmam ou contrapõem. Não por acaso temos a intuição de que quanto mais informação disponível, melhor serão as decisões tomadas.
A informação amplamente disponível é a base das relações comerciais, e sua primazia viabiliza mercados como de capitais, à exemplo das bolsas de valores e mercados de balcão. Nos mercados de ações, o acesso às informações é minuciosamente tutelado pela legislação e órgãos de fiscalização, materializado nos deveres de lealdade e informação, aplicáveis aos administradores de sociedades anônimas (artigos 155 e 157 da lei 6.404/1976 – “Lei das S.A.”), bem como nas Instruções CVM no 480/09 (art. 21, II e Anexo 24, itens 4.3 e 4.5) e 358/02 (art. 2, parágrafo único, XXII).
Nestes mercados, o direito ao acesso às informações é a regra a ser cumprida, e deve ser interpretado como um direito instrumental, capaz de garantir o exercício de outros direitos patrimoniais ou extrapatrimoniais.
Há, contudo, importantes limites ao acesso à informação e dever de informar, fundados no direito à privacidade das pessoas jurídicas1 (Constituição Federal, art. 5o, X e Código Civil, art. 52), bem como a necessidade de proteção a determinados conhecimentos ou segredos.
Dentre algumas categorias de informações tipicamente protegidas do acesso pelo público, podemos citar segredos comerciais, contratos protegidos sob cláusulas de confidencialidade, segredo de justiça, e direitos de propriedade intelectual. Não se nega que informações relativas a qualquer das categorias citadas seriam de grande utilidade ao público em geral, corrigindo assimetrias de informação importantes. Contudo, em detrimento da publicidade e ganhos à sociedade como um todo, os proprietários daqueles segredos são merecedores de proteção legal, de forma que a confidencialidade de seus segredos merece respaldo.
Dentre as zonas de conflito entre o dever de informar e o direito à privacidade, tem se destacado, em especial, as contendas adjacentes aos procedimentos arbitrais envolvendo companhias listadas em bolsa de valores.
É intrínseco à qualidade de sócio o direito ao acesso à informação, seja para fundamentar votos, tutelar as minorias ou como forma de fiscalizar a administração.
O direito à informação do sócio possui como seu correlato o dever de informar da sociedade, exercido através da figura de seus administradores. Nas sociedades abertas, no entanto, esse direito/dever assume contornos especiais, sendo, em ultima instância, a própria fundação do mercado de ações em si, um instrumento de confiança e legitimação.
Essa rede ou estrutura de confiabilidade propicia ganhos elevados ao mercado como um todo, agindo como uma externalidade positiva. Empresas captadoras de recursos no mercado de ações procuram beneficiar-se deste efeito favorável, culminando em iniciativas como o lançamento de segmentos de mercado categorizados pelo grau de aplicação do dever de informar. O mais notório em âmbito nacional sendo o “Novo Mercado”, da B3.
Ocorre que, ao aderir ao segmento do Novo Mercado (bem como aos mercados Nível 2, Bovespa Mais e Bovespa Mais Nível), as companhias estão obrigadas à inserção de cláusula de foro arbitral em seus Estatutos Sociais, com eleição da Câmara de Arbitragem do Mercado – CAM/B3 para julgar quaisquer conflitos. Em prática quase uníssona às grandes câmaras arbitrais empresariais2, o regulamento da CAM/B3 prevê, como regra, o sigilo de todo e qualquer procedimento arbitral (art. 9.1).
Nos deparamos, então, com aparente conflito de normas, que tem gerado repercussões na mídia e nos meios empresariais. Por um lado, as companhias aderentes ao Novo Mercado estão obrigadas a um elevado grau de divulgação de informações; por outro, suas disputas litigiosas de maior relevância tramitam necessariamente sob confidencialidade.
É certo que a normatização da CVM exemplifica como fato relevante, passível de divulgação ao mercado, a propositura de procedimento arbitral que “possa vir a afetar a situação econômico-financeira da companhia” (ICVM no 358/02, art. 2, parágrafo único, XXII). Todavia, o que se verifica, na prática, é uma leitura excessivamente literal do dispositivo, resultando em divulgações tardias, ineficientes ou contraproducentes de fatos relevantes relacionados a procedimentos arbitrais.
Recentemente tivemos caso emblemático desta problemática, envolvendo a Petrobrás. Após vazamento de decisão arbitral, a CVM questionou à Petrobrás a razão da não divulgação de fato relevante. A diretoria da Petrobras defendeu-se alegando a confidencialidade do procedimento e o caráter recorrível da decisão vazada3.
Atualmente, a normatização concede à diretoria das companhias abertas um certo grau de discricionariedade acerca do enquadramento de evento ocorrido em processo arbitral como fato relevante. Certo é que há necessidade, no caso concreto, de contemporizar o conflito entre as normas. A legislação nacional é inequívoca ao prever que a confidencialidade arbitral não é direito absoluto, conforme entendimento pacífico na doutrina e jurisprudência, refletido na Lei de Arbitragem4. A mitigação dos efeitos da confidencialidade é tema amplamente discutido na doutrina nacional5.
No mesmo sentido, a CVM já se manifestou em procedimento administrativo, ao afirmar que o direito dos acionistas à informação não pode ser prejudicado pela confidencialidade da maioria dos procedimentos arbitrais6. Em manifestações mais recentes, esta posição foi reiterada pelo presidente da CVM, Marcelo Barbosa7, reforçando as pretensões da autarquia de alterar as normas atualmente vigentes8.
Manifestações recentes de autoridades e órgãos públicos sugerem um movimento do regulador no sentido de ampliar diretrizes para divulgação de fatos ocorridos em arbitragens confidenciais.
Em estudo9 realizado de forma conjunta pela CVM, OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e SPE (Secretaria de Política Econômica), intitulado “Fortalecimento dos meios de tutela reparatória dos direitos dos acionistas no mercado de capitais brasileiro”, o grupo de trabalho identificou a necessidade de modernização da legislação relativa à arbitragem, para melhor comportar disputas relativas a direitos coletivos.
A lacuna, ainda segundo o estudo, reside na divergência entre a Lei da Arbitragem – que prevê a competência arbitral para resolução de litígios sobre direitos patrimoniais disponíveis – e a Lei das S.A. – que não faz distinção quanto às matérias que podem ser submetidas à arbitragem. Essa lacuna, por vezes, produz conflitos entre o processo que tramita estritamente inter-partes, regra dos processos litigiosos, mas que resulta em efeito erga omnes, entendida a coletividade como os acionistas e o mercado como um todo. Essa discrepância pode ser acentuada pelos efeitos da sobreposição da confidencialidade ao direito de informação/dever de informar.
O cerne da questão, portanto, reside na assincronia entre o conhecimento do fato relevante e a percepção de seus efeitos.
É de se esperar o aprofundamento da normatização relativa ao conflito aqui apresentado. São diversas as abordagens possíveis à controvérsia, assim como os direitos e interesses a serem tutelados. Sendo o Brasil o único país de tradição Civil Law a regulamentar o uso da arbitragem em disputas envolvendo companhias abertas, o conflito há de ser decifrado de forma igualmente inovadora. Dentre as recomendações constantes do estudo publicado pela CVM, OCDE e SPE, é de se destacar dois interessante mecanismo de legitimação da extensão dos efeitos erga omnes de uma decisão arbitral a terceiros: “garantir que todas as partes afetadas tenham conhecimento (i) do início de um procedimento arbitral (isto é, tornando possível sua participação ativa na formação do tribunal e na discussão dos direitos) ou (ii) da decisão proferida (isto é, permitindo que as partes afetadas reivindiquem seus direitos, conforme delimitado na decisão).”
O que não se pode perder de vista é a essencialidade do acesso à informação, que deve ser sempre o norte da conduta dos administradores, frente à hipótese excepcional do sigilo, da não divulgação. A transparência deve ser alimentada e valorizada, aperfeiçoando-se constantemente seus padrões e métricas.
A necessidade de maior transparência tem levantado discussões em câmaras arbitrais das mais relevantes, as quais tem passado a divulgar seu repertório jurisprudencial, uma excelente medida de orientação e parametrização. Também os participantes e reguladores do mercado tem de seguir avançando, caminhando para solidificar a cultura da transparência e acesso à informação.
O acesso pleno à informação é uma jornada utópica, que sempre esbarrará nos conflitos de interesse que permeiam a realidade. O valor desta utopia, contudo, reside justamente na jornada, a contínua busca pelo aprimoramento das regras e práticas de mercado, em benefício da coletividade.
O fortalecimento do mercado de capitais no Brasil depende de nossa capacidade de maturar e evoluir seus parâmetros de confiabilidade. A manutenção do crescimento do número de participantes da bolsa dependerá da confiança que o investidor aspira. A diminuição das barreiras de desconfiança é crucial para a evolução do mercado, que trará benefícios a todos os seus participantes.
O conhecimento é poder.
*Agradecimento especial ao advogado Fábio Baum que colaborou com o artigo.
Para quem tiver interesse e quiser se aprofundar no assunto:
Processo Administrativo CVM nº RJ 2008/0713.
Direito à Informação nas Sociedades Comerciais.
A relativização da confidencialidade na arbitragem; companhias abertas.
Confidencialidade é regra geral na arbitragem.
A Confidencialidade na Arbitragem e o Dever de Informação nas Companhias Listadas no Novo Mercado.
SEREC, Fernando Eduardo; COES Eduardo Rabelo Kent. Confidencialidade de arbitragem é relativizada.
Dever de Informar x Dever de guardar sigilo.
Para CVM, sigilo da arbitragem não exime empresas de divulgarem fatos relevantes.
Para CVM, há dúvida se sigilo de arbitragens é praticado de forma adequada.
__________
1 Anote-se que, no direito brasileiro, não há dúvidas quanto à ampla personificação das sociedades empresariais, não havendo distinção constitucional quanto à proteção aos direitos extrapatrimoniais concedidos às pessoas naturais e jurídicas. Este mesmo posicionamento, ainda que ensejador de divergencia, é defendido por boa parte da doutrina nacional, a exemplos de Sérgio Severino, Carlos Alberto Bittar, e José de Aguiar Dias. No mesmo sentido, da ampla proteção aos direitos patrimoniais da pessoa jurídica, a Súmula 227 do STJ.
2 Cite-se, a título de exemplo os regulamentos arbitrais da CCI (arts. 22.3 e 26.3), ICDR (art. 37.2), CCBC (art. 14.1), bem como as Regras de Arbitragem da UNCITRAL (arts. 28.3 e 34.5).
3 Para CVM, sigilo da arbitragem não exime empresas de divulgarem fatos relevantes.
4 Lei 9.307/96, art. Art. 1.º § 1.º A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis (…).
Art. 2.º § 3.º A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade
5 Cite-se, a título de exemplo: Luiz Olavo Baptista, comentando o Processo Administrativo CVM n. RJ 2008/0713, na obra V Congresso do Centro de Arbitragem Comercial, Intervenções, Centro de Arbitragem Comercial e SALOMÃO FILHO, Calixto. Breves notas sobre transparência e publicidade na arbitragem societária. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, RT, ano 14, vol. 52, jan./mar., 2017, p. 65-66.
6 Processo CVM N. RJ 2018/0713, decisão de 27 de abril de 2010.
7 Para CVM, sigilo da arbitragem não exime empresas de divulgarem fatos relevantes.
8 Para CVM, há dúvida se sigilo de arbitragens é praticado de forma adequada.
Atualizado em: 3/12/2020 08:29
Pierre Moreau é sócio-fundador da Moreau | Valverde Advogados (1991) e da Casa do Saber (2004), ex conselheiro fiscal do Hospital Sírio Libanês, árbitro de diversas câmaras de arbitragem. Professor do Insper e professor visitante na Universitat St. Gallen, organizou e escreveu diversos livros como Fora da Curva II (Portfolio-Penguin, 2020), A Nova Geração de CEOs (Portfolio-Penguin, 2018), Grandes Crimes (Três Estrelas, 2017), Fora da Curva (Portfolio-Penguin, 2016), Grandes Advogados (Casa da Palavra, 2011 e O Financiamento da Seguridade Social na União Europeia e no Brasil (Quartier Latin, 2005). É mestre e doutor em Direito pela PUC/SP. Cursou Harvard Law School e Harvard Business School.
https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalha-do-saber/337231/conhecimento-e-poder