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22/06/2021A confusão entre plantar maconha e produção de medicamentos à base de canabidiol
Cirilo Tissot*
22 de junho de 2021 | 06h00
Cirilo Tissot. FOTO: DIVULGAÇÃO
Diante da recente manifestação de comissão da Câmara dos Deputados aprovando projeto que autoriza plantio de cannabis no Brasil para fins medicinais, consideramos relevante retomar em termos sensatos a discussão sobre a liberação do uso medicinal da maconha. Por conta de grandes interesses econômicos, de saúde pública, de segurança social, ideologia e crenças diversas, estabeleceu-se, de forma deliberada, uma enorme confusão entre plantar maconha e a produção de medicamentos à base de canabidiol.
Como médicos psiquiatras no front do tratamento de compulsivos químicos e suas comorbidades, lidamos com as doenças decorrentes do uso, abuso, adoecimento e vício causados pela maconha. Isso não nos autoriza a expor, com a devida propriedade, aspectos sobre a segurança pública no que tange às políticas de combate ao narcotráfico. Muito menos a tecer comentários sobre os efeitos econômicos da legalização da maconha. Nestas esferas, quando muito, podemos sim recomendar atenção especial sobre os efeitos que tais práticas geraram nos locais pioneiros destas iniciativas. Os dados das cidades norte-americanas, canadenses e uruguaias precisam ser sopesados e, de forma transparente, expostos para que a sociedade, por si, faça suas escolhas.
De outra parte, temos, sim, fundamentos para argumentar em favor de medicamentos à base de canabidiol, postos à disposição da saúde pública, lastreados na lei.
Assim, com base em nossa experiência, vimos esclarecer duas questões comuns nas conversas sobre o tema.
Em primeiro lugar:
Canabidiol não é maconha
Afirmações que utilizam o termo “maconha” como sinônimo de “canabidiol” são comuns, porém falsas. A maconha é uma planta cujo nome científico é cannabis, possuindo várias subespécies que, por sua vez, possuem diferentes substâncias ativas, sendo duas delas as mais conhecidas: o tetra-hidro-canabinol – ou THC – é a parte que gera os efeitos psicoativos com alterações sensoriais, é a “que dá o barato”, e já tem os seus efeitos bem estudados e declarados; já o canabidiol poderia ser considerado a “parte positiva da maconha”, ou terapêutica, que começa a ser mais bem estudada e compreendida.
Canabidiol como medicamento
Assim sendo, o canabidiol extraído da planta cannabis já tem seus efeitos terapêuticos cada vez melhor documentados em estudos no exterior, em algumas epilepsias que não respondem a outros tratamentos. E há estudos com boa resposta para dor crônica, principalmente naquelas que envolvem a parte motora do indivíduo, ansiedade, uso em cosméticos etc.
Pode-se dizer, portanto, que o que está sendo liberado é o CANABIDIOL, para ser comercializado como substância terapêutica no sentido positivo do processo. Isso não tem nada a ver com a QUESTÃO DA LIBERAÇÃO DA MACONHA e sua discussão filosófica, política, social ou econômica.
Esclarecida esta confusão, no entanto, resta, sim, ainda, contexto perigoso na adoção destes medicamentos. Historicamente, o lançamento de medicação psiquiátrica tende a criar uma “droga do paraíso”. Ainda mais em se tratando de substância que deriva de uma droga já tão polêmica.
Pior, podemos vir a ter no Brasil o espelhamento destas drogas com a dantesca crise de consumo de opióides como se tem acompanhado nos Estados Unidos.
Por isso, é de responsabilidade das autoridades dos Poderes Legislativo e Executivo federais a adoção de regulamentação capaz de coibir abusos, desvios e crimes.
Felizmente, já temos experiência positiva neste campo com os fármacos de alto poder analgésico (morfina e derivados), produzidos a partir da papoula, a mesma planta que dá origem ao ópio.
O segundo ponto de atenção é sobre o arcabouço de conhecimento que a ciência, até hoje, conseguiu reunir:
- A maioria dos estudos que utilizam a cannabis, ou parte dela (canabidiol), para tratar diversos problemas de saúde, como por exemplo, ansiedade, começaram recentemente, e ainda não foram suficientes para se obter uma indicação clara tanto da eficácia quanto detalhes como dose, forma de administração, efeitos colaterais, etc;
- Quanto à ansiedade, já existem medicamentos para ansiedade eficazes e baratas; o que se sabe é que a cannabis, por mais que venha a se juntar a esse rol de medicações, nesse sentido, não parece ser tão melhor do que as outras medicações, ou seja, ainda não demonstrou superioridade inequívoca em relação às outras medicações hoje disponíveis, muito embora possa haver subgrupos de pessoas que se beneficiem da cannabis ou do canabidiol – questões a serem respondidas;
- E, nesse exato momento, no Brasil, o custo-benefício hoje para se usar o canabidiol para ansiedade não compensa.
Outros aspectos que somente agora deverão ser considerados se relacionam a novas aplicações quanto a outras doenças, o que se sabe é que realmente o canabidiol tem efeitos muito importantes em relação às atividades motoras, sendo extremamente positiva para pacientes que têm problemas de Parkinson, epilepsia etc.
Já temos informações sobre estudos para aplicações do canabidiol em dores reumáticas e doenças do colágeno.
Há vários estudos relativos ao tratamento da psicose (esquizofrenia) com cannabis, inclusive no Brasil. Sabe-se que o THC produz sintomas psicóticos, alterações sensoriais, alucinações. Em pessoas suscetíveis, ele é considerado fator desencadeante para esquizofrenia, embora este mecanismo, que envolve fatores genéticos, ainda esteja sendo mais bem compreendido.
Já o canabidiol exerce uma função protetora, como contrapartida ao THC. Nesse sentido, há a possibilidade do canabidiol vir a se tornar base de medicação importante para a esquizofrenia, no sentido de melhorar não só os sintomas psicóticos, mas também outros comprometimentos (como isolamento social, entre outros) destas pessoas.
Por fim, vem a parte mais importante relacionada à segurança para que tudo isso possa ser feito há a necessidade de marco legal para liberação do uso medicinal da maconha e incentivos para realização de estudos clínicos controlados com a participação de instituições de peso como Faculdade de Medicina USP (São Paulo e Ribeirão Preto) e Escola Paulista de Medicina (UNIFESP) para fazer um “trial “ (estudo controlado de base científica) dessa medicação, como parte de reunir as evidências necessárias para o correto uso da substância, bem como revisões sistemáticas sobre o tema.
Como se vê, a parte boa da história é extremamente complexa e custosa. Para além da questão científica e do benefício que um medicamento à base de canabidiol possa exercer sobre a população necessitada, muitos dos que se apresentam como interessados no tema contribuem para esta grande confusão entre “maconha” e medicamentos à base de canabidiol, pois acabam parecendo que “estão mais é querendo plantar maconha, vender maconha”.
Ademais, temos aqueles que distorcem a narrativa dizendo “está vendo, as pessoas têm preconceito contra a maconha, maconha pode ser fumada”, enquanto outros, nesta mesma linha, se colocam contrários ao uso medicinal por acharem que seria uma liberação da maconha recreativa, e não tem nada que ligue uma coisa com a outra.
Há, ainda, quem esteja investindo na produção dessa medicação e quer mais é que “plantem maconha e que se venda um monte”. E a realidade, como a de qualquer outra medicação, é que quando realmente é lançada e as pessoas começam a tomar, tudo se modifica e se ajusta (há estudos feitos após o lançamento, contando com um número de pessoas tomando muito maior, e no “mundo real”, justamente para isso), e os ajustes, quando necessários, são feitos. Ou seja, para a população, no dia a dia, com tantos fatores interagindo, mesmo após a descoberta de efeitos terapêuticos de determinada substância, como o canabidiol, tudo tende a ser bem diferente das fantasias e expectativas que as pessoas em geral, na comunidade, tinham.
*Cirilo Tissot, psiquiatra especializado no tratamento de compulsões químicas e terapeuta familiar; Maria Cristina Ribeiro Grilli, mestre em psiquiatria pela FMUSP